NO FIM DA ESTRADA



No fim da estrada

tudo é quase imóvel indiferente.

Avistam-se ao longe os rebanhos

identificam-se os lobos

sabe-se que virão saciar-se

e não se foge.



O outono invade-nos a casa.

Entra descalço, sorrateiro

e envolve-nos, decidido

como a noite envolve os montes

e o luar expõe as corujas.



Ignora-se a noite

faz-se de conta que se vive

e que o choro são cânticos.

Fita-se o mar

cheira-se a terra e balança-se

abraçando os percalços que encontramos

em cada esquina do vento.



Cordeiros mansos

corremos ao encontro dos lobos, sem temor

na ânsia aflita de sentir tudo

(mesmo que seja dor)

mesmo que a bala nos trespasse

vestida de abraços e sorrisos.



No fim da estrada já não importa

quem nos beba o sangue.


Francisco José Rito






 

O VOO DAS AVES SERÁ SEMPRE GRIS


A raiva é sede que flutua

no ventre esverdeado das almas ocas,

rogando pragas que ninguém entende.


O amor é vale de carne fértil

regado por um rio de vinho doce e alfazema

colhidos de fresco.


Entre nós - nascente e foz

nem a neve será eterna no caminho

nem o vento verá o fim à seara loira

nem as abelhas provarão o mel

das flores que não nasceram.


O voo das aves será sempre gris

porque o azul gastou-se a pintar o céu.


Francisco José Rito




 

Chegou a noite

a desenhar estrelas na negrura dos teus olhos.


A lua lavrou-te a pele em sulcos profundos

e plantou-te o desejo na carne fértil.


Foste Eros. Floriste.

E a chuva de prata prolongou-se

na eternidade das horas

regando-nos a cama – canteiro

onde nos colhemos até à última pétala.


Francisco José Rito








 

QUE FAZES TU EM MIM, A ESTA HORA?


Invades-me a boca

sem te anunciares.

Ânsias que se cruzam,

lábios que se mordem,

juras proferidas em surdina.


Ouve-se o soluço da pele,

âmago da vida, a arrastar-nos

para as catacumbas da carne,

onde os corpos se fundem

e as almas se espraiam

na imensidão da noite.


Depois a lua adormece.

Os galos choram as dores

das horas proibidas,

da guerra e da paz.


Que fazes tu em mim,

a esta hora,

senão para me dizeres dos teus desejos

como os figos de setembro

vastos, húmidos e doces?


Francisco José Rito




 NÃO SEI DAS TUAS MÃOS


Fizeste-te casa para me abrigar
paredes feitas de coragem.

Cresci nesse castelo – muralha
regaço de palavras e ternura.

Teus olhos, janelas de me ver
a brincar p´las ruas do destino
menino-homem sempre irrequieto.

A boca prenhe de ladainhas
rezava-me ao ouvido a sua fé
e eu dormitava em segredo
nas tuas mãos abertas
buscando perder-me nos sonhos proibidos.

Hoje não sei das tuas mãos.
Não sei me velas. Fechaste a janela
ou rodeias-me ainda, disfarçada
nos raios de sol,
na aragem da ramaria,
no arrulhar das rolas
ou nos versos que finjo inventar?

Hoje sou eu a casa
que me ensinaste a construir.
Sou alicerce. Escada. Janela. Telhado.

Sou eu que rezo a saudade.
A partida sem bagagem.
O silêncio da gare deserta.

Depois fecho a porta,
apago as luzes,
percorro as salas vazias,
recordo a alegria de te ter
e aguardo o reencontro prometido,
mãe.

Francisco José Rito



 

PRINCÍPIO


Entrar pela

manhã adentro

como a andorinha

que se replica

em lençóis de barro


como o amante

de um corpo inerte

que se consome a resgatá-lo

dos braços da incógnita


escondido na sombra

dos beirais de vidro

de um amor tisnado

e dúbio


tão inconstante

como o azul das mãos.


Francisco José Rito






CATIVO
Nas tuas mãos
o poder obliquo da carne
qual destino que passa
sem passar por nós.
Os dois no café
a mesa vazia de certezas
o clarão do teu olhar a incendiar-me.
Vais e vens
entre palavras fugazes
e eu fujo ao toque da pele que delira
como a morrer de rosas.
Assim quero morrer.
Sobre nós cantarei ao universo
trovas de um amor sonhado.
Sobre os meus olhos direi
que foram presas fáceis
à magia dos teus.
Francisco José Rito



Aprendi a arte
de te reconhecer na pradaria,
na magia dos canteiros floridos,
na frescura das cascatas,
no calor do sol de agosto.
A arte de te saber sempre por perto,
porque o teu amor de mãe é eterno,
e o meu de filho também.

As mães cheiram a limonete.
A alfazema. A amor.
E é na eternidade do seu amor que nos abraçam
de lá, da imensidão do Paraíso,
onde se entretêm a brincar umas com as outras,
às escondidas de nós.
Mas basta o suspiro de um filho
e é vê-las, vindas sabe-se lá como,
a embalar-nos a saudade.

Francisco José Rito



SEGUNDA SESSÃO - 25 DE NOVEMBRO DE 2023


 

 

Joaquim Agostinho Miranda, prefaciador do livro “À procura do azul das coisas” de Francisco José Rito, foi locutor da Rádio Vizela e da Rádio Fundação.Atualmente integra o departamento comercial de uma grande multinacional. De uma conversa sua com o autor, surgiu esta (quase) entrevista:


"A poesia inspira o poeta ou o poeta inspira-se num desalinhamento com a poesia?"

- É o poeta que se inspira em momentos e sentidos nem sempre reais, nem sempre poéticos, porque as vidas nem sempre são belas. São por vezes ásperas, duras, cruéis.Ver poesia no rojar dos dias é privilégio de uns quantos, por mais tristes que os dias sejam. Ou não fosse a dor a maior musa.


Quinze livros publicados, maioritariamente poesia e apenas um romance. Como se vê o Francisco enquanto escritor?"

- Um eterno inconformado, com quase tudo por dizer, sem se prender a géneros.

"Se hoje parasse de escrever, como definiria a sua obra literária?"

- Tudo o que escrevi até hoje poder-se-á comparar a uma casa inacabada. Se parasse agora de escrever ficaria a obra sem telhado, sem portas, sem janelas, e com tantas histórias por idealizar, na sala, no quarto, na varanda, no jardim. Por idealizar e por contar! Sorrisos por despertar. Dores por sarar.

"O que ainda lhe falta dizer em prosa ou poesia?"

- Tantas coisas... Ainda não falei do inenarrável. Da agonia dos cumes da serra, vilmente açoitados pelos ventos de inverno. Do prazer das margens regadas pelos ribeiros, frescura que penetra a terra com a voracidade de quem faz um filho. Da insegurança do amante sucumbido ao êxtase.


"Quando refere que desafiava os autores nas entrelinhas, significa que a sua audácia para a escrita nasceu pelo impulso de mostrar uma outra forma de abordar a literatura?"

- Recordo esse tempo e acho-me incapaz de impor ou mesmo sugerir o que quer que fosse. Talvez a irreverência falasse mais alto. Ou talvez esta insaciedade já me habitasse na época.

"Depois desta espécie de resumo da obra publicada o que lhe apetece fazer a seguir?"

- Falar mais da nossa gente, principalmente dos castigados por este Portugal tão desigual. Seguir nesta cruzada de dar voz aos que a não tiveram. Que ainda a não têm! Estou neste momento a contar a história de uma mulher que se atreve a mexer no destino e paga bem caro o atrevimento. Mas, sobre isso falaremos depois...






 

A GALOPE ENGULO OS DIAS


Esmago palavras

nas minhas mãos fechadas.

Escorre-me pelos dedos

a seiva acre de poemas

que não ouso escrever.


A galope engulo os dias.

Ardo por dentro. E os pés

em brasa tatuam pegadas

na estrada da solidão.


O ventre da terra

desfaz-se em horas ocas.

O rio ruma à nascente, buscando

uma brecha para recomeçar.


Francisco José Rito



CONVITE:

 - Na mesma linha de tantos eventos que já organizei nesta terra, esta será uma sessão informal, sem grandes floreados, porque a rainha da noite será a poesia.
- O professor Paulo Amorim fará o favor de apresentar a obra.
- A leitura e interpretação estarão a cargo de alguns alunos do Agrupamento Escolar da Murtosa.
- O último coelho mantém-se na cartola, a aguardar confirmação.
NO CRM DA MURTOSA, DIA 4 DE AGOSTO ÀS 21:30
Até lá, abraço-vos!



PERDIDOS

Um dia acordamos secos
e órfãos da fonte que nos saciava.

Os choupos cresceram e arderam
indiferentes ao carpir das nossas dores.
A canção que embalava ainda ecoa
mas calou-se a voz que a cantava.

Por vezes soltamo-nos das horas mortas
e cruzamo-nos com os resquícios
da felicidade que julgámos eterna.

Escrevo-te no sótão da casa
que não construí ao fim do caminho.
Ruíram as paredes por erguer
à espera da cor que nunca escolhi.

Felizes os capazes
de inventar um regaço
ou o par de braços abertos
que dificilmente encontrarão
quando a fresta da memória
apenas reflete os sorrisos
das tardes de infância.

Francisco José Rito



UM CARDO DISFARÇADO DE ALFAZEMA


Esta ânsia que sinto

é janela aberta

para um prado

sem cores e sem cheiros.


É uma miragem

um rosto

uma voz nos longes

um roce imaginado

um cardo disfarçado

de alfazema.


Esta ânsia que sinto

é um carreiro estreito

que acaba num muro

mais alto que o sol.


Nele me embrenhei

coração órfão

de gargalhadas roucas

e outros mimos.


Nele me perdi

nesta ânsia de perseguir

sonhos proibidos

e outras sinas.


Francisco José Rito




O amor é coisa para se perpetuar na alma


Se eu te pedisse

para me resgatares às malhas da insónia

saberias procurar-me na apatia da noite?


Penso que nem notarias

o desalento das horas mortas

em que o sol nos castiga e se esconde,

negando-se a corar-te as faces.


É mais seguro pensar-te sempre a meu favor

como as rosas brancas que nunca destoam

ou a brisa que refresca a planície sem derrubar os girassóis.


Prefiro acreditar

que se te rasgasse as paredes do peito

e te arrancasse o coração,

tu continuarias a amar-me

porque o amor é coisa

para se perpetuar na alma

e não na carne regressada ao pó.


Se eu te pedisse

para leres este poema

saberias decifrar os meus recados?


Francisco José Rito



 

 NÃO TE CALES

Não te cales
onde ouvires silêncio
faz do olhar faróis a encandear
o negro das crateras
e sorri quando não vires
o fundo ao mar que se adivinha
não te cales
onde ouvires ruído
fala sempre mais alto
que os passos que te seguem
ou os uivos que te afligem
não te cales
perde o sangue em praça
se for esse o teu destino
mas não te permitas
esconder nos atalhos do medo
ou que a morte te venha
de onde a não vejas.

Francisco José Rito



 

Fascínio


De grãos de areia

construo a nossa casa.

De frutos ruivos

visto os nossos dias.

Grão a grão, pétala a pétala

embriago-me do fascínio

que é viver para ti.


Francisco José Rito




 

O PRIMEIRO BEIJO


A lua

cerrou as cortinas

e recolheu-se

deixando a noite

à cumplicidade

dos amantes.


As casas

as árvores

a ponte

o rio


todos nos observavam

expectantes.


Não é fácil

disfarçar o embaraço

do primeiro beijo.


Francisco José Rito




E ASSIM NASCE O POEMA

 

A bruma

polvilha de prata

a melancolia da noite


a saudade entra

pela janela aberta

a soluçar queixumes

ao ouvido do poeta


e assim

inevitavelmente

nasce o poema.


Francisco José Rito




 

Um breve segundo


Um segundo

é o tempo que demora o sorriso

a florescer-te nos lábios


num segundo

as palavras voam-te da boca

e circundam-me, mandarins coloridos

cantando ao desafio com os raios de sol

que te arruivam o rosto


um breve segundo

lapso de tempo em que mergulhas

no azul dos meus dedos

e o teu corpo desabrocha

como as hortênsias de maio.


Francisco José Rito



ÂNSIA


Qual semente esquecida

anseio um raio de sol

uma leiva macia

uma manhã de bruma

o abrigo de um cômoro

uma cama de trevo

onde me deite contigo

até à metamorfose prometida


Francisco José Rito








GRITOS DE BOCA

Cansámos a lua de tanto espreitar
a nudez dos nossos beijos
naquele serão molhado e frio

o mar cantarolava
a mais bela canção
desfile de vagas sorrateiras
babujando a falésia

os beijos, gritos de boca
rasgando o véu do silêncio
desfazendo-se nos lábios
como o sargaço nas coxas

e depois o êxtase
a explosão de estrelas nos corpos cálidos
e os olhares afogueados como tochas
a incendiar a escuridão da noite.

Francisco José Rito



O QUE FUI REINVENTOU-SE

Dói-me o corpo em brasa
de planar sobre a lava quente
do vulcão que sou, em erupção
o que fui esqueceu-se de o ser
nada mais me habita
do que este prazer de levantar voo
quando outros querem manter-me
de pés amarrados à muralha
o que fui reinventou-se
o que devia ao mundo
paguei-lhe com esta vontade de viver
mesmo quando a vida é um saco de nada
atirado para os fundões da incerteza.

Francisco José Rito
(fotografia de António Borges da Silva)