Francisco José Rito
poesia, prosa e outros devaneios
DOR OU A ÚLTIMA CARTA
FATIMA SANTOS
As fotos retratam o álbum duplo de Fátima Santos, artista portuguesa radicada na área metropolitana de Nova Iorque.
NA ESTAÇÃO
Não ligo aos anúncios
que falam de países que não quero conhecer
de partidas que não me levarão de mim
de destinos que não estão no meu caminho.
Não ligo à voz estridente
da madame que grita ao telemóvel
ou ao casal que geme na última carruagem.
Não ligo à corrida do pica
que persegue o rapaz por entrar sem bilhete
ou aos berros dos polícias
atrás do gangue que grafitou o comboio das 7:00.
Não ligo ao jornalista
que anuncia a eleição de um fascista
nem ao comentador que prevê
a utilização de armas nucleares ao fundo do meu quintal.
Eu não luto em guerras que não sei vencer
nem como desse pão que nos dão na boca.
Eu colho fruta que alimente:
dióspiros, tangerinas ou palavras
escondidas nos labirintos dos poemas.
Urge saciar-me, que o inverno será longo
e o pomar pequeno demais para tanta alma.
Francisco José Rito
NO FIM DA ESTRADA
No fim da estrada
tudo é quase imóvel — indiferente.
Avistam-se ao longe os rebanhos
identificam-se os lobos
sabe-se que virão saciar-se
e não se foge.
O outono invade-nos a casa.
Entra descalço, sorrateiro
e envolve-nos, decidido
como a noite envolve os montes
e o luar expõe as corujas.
Ignora-se a noite
faz-se de conta que se vive
e que o choro são cânticos.
Fita-se o mar
cheira-se a terra e balança-se
abraçando os percalços que encontramos
em cada esquina do vento.
Cordeiros mansos
corremos ao encontro dos lobos, sem temor
na ânsia aflita de sentir tudo
(mesmo que seja dor)
mesmo que a bala nos trespasse
vestida de abraços e sorrisos.
No fim da estrada já não importa
quem nos beba o sangue.
Francisco José Rito
O VOO DAS AVES SERÁ SEMPRE GRIS
A raiva é sede que flutua
no ventre esverdeado das almas ocas,
rogando pragas que ninguém entende.
O amor é vale de carne fértil
regado por um rio de vinho doce e alfazema
colhidos de fresco.
Entre nós - nascente e foz
nem a neve será eterna no caminho
nem o vento verá o fim à seara loira
nem as abelhas provarão o mel
das flores que não nasceram.
O voo das aves será sempre gris
porque o azul gastou-se a pintar o céu.
Francisco José Rito
Chegou a noite
a desenhar estrelas na negrura dos teus olhos.
A lua lavrou-te a pele em sulcos profundos
e plantou-te o desejo na carne fértil.
Foste Eros. Floriste.
E a chuva de prata prolongou-se
na eternidade das horas
regando-nos a cama – canteiro
onde nos colhemos até à última pétala.
Francisco José Rito
QUE FAZES TU EM MIM, A ESTA HORA?
Invades-me a boca
sem te anunciares.
Ânsias que se cruzam,
lábios que se mordem,
juras proferidas em surdina.
Ouve-se o soluço da pele,
âmago da vida, a arrastar-nos
para as catacumbas da carne,
onde os corpos se fundem
e as almas se espraiam
na imensidão da noite.
Depois a lua adormece.
Os galos choram as dores
das horas proibidas,
da guerra e da paz.
Que fazes tu em mim,
a esta hora,
senão para me dizeres dos teus desejos
como os figos de setembro
vastos, húmidos e doces?
Francisco José Rito
NÃO SEI DAS TUAS MÃOS
Fizeste-te casa para me abrigar
paredes feitas de coragem.
Cresci nesse castelo – muralha
regaço de palavras e ternura.
Teus olhos, janelas de me ver
a brincar p´las ruas do destino
menino-homem sempre irrequieto.
A boca prenhe de ladainhas
rezava-me ao ouvido a sua fé
e eu dormitava em segredo
nas tuas mãos abertas
buscando perder-me nos sonhos proibidos.
Hoje não sei das tuas mãos.
Não sei me velas. Fechaste a janela
ou rodeias-me ainda, disfarçada
nos raios de sol,
no arrulhar das rolas
ou nos versos que finjo inventar?
Hoje sou eu a casa
que me ensinaste a construir.
Sou alicerce. Escada. Janela. Telhado.
Sou eu que rezo a saudade.
A partida sem bagagem.
O silêncio da gare deserta.
Depois fecho a porta,
apago as luzes,
percorro as salas vazias,
recordo a alegria de te ter
e aguardo o reencontro prometido,
mãe.
Francisco José Rito
Aprendi a arte
de te reconhecer na pradaria,
na magia dos canteiros floridos,
na frescura das cascatas,
no calor do sol de agosto.
A arte de te saber sempre por perto,
porque o teu amor de mãe é eterno,
e o meu de filho também.
As mães cheiram a limonete.
A alfazema. A amor.
E é na eternidade do seu amor que nos abraçam
de lá, da imensidão do Paraíso,
onde se entretêm a brincar umas com as outras,
às escondidas de nós.
Mas basta o suspiro de um filho
e é vê-las, vindas sabe-se lá como,
a embalar-nos a saudade.
Francisco José Rito
Joaquim Agostinho Miranda, prefaciador do livro “À procura do azul das coisas” de Francisco José Rito, foi locutor da Rádio Vizela e da Rádio Fundação.Atualmente integra o departamento comercial de uma grande multinacional. De uma conversa sua com o autor, surgiu esta (quase) entrevista:
"A poesia inspira o poeta ou o poeta inspira-se num desalinhamento com a poesia?"
- É o poeta que se inspira em momentos e sentidos nem sempre reais, nem sempre poéticos, porque as vidas nem sempre são belas. São por vezes ásperas, duras, cruéis.Ver poesia no rojar dos dias é privilégio de uns quantos, por mais tristes que os dias sejam. Ou não fosse a dor a maior musa.
“Quinze livros publicados, maioritariamente poesia e apenas um romance. Como se vê o Francisco enquanto escritor?"
- Um eterno inconformado, com quase tudo por dizer, sem se prender a géneros.
"Se hoje parasse de escrever, como definiria a sua obra literária?"
- Tudo o que escrevi até hoje poder-se-á comparar a uma casa inacabada. Se parasse agora de escrever ficaria a obra sem telhado, sem portas, sem janelas, e com tantas histórias por idealizar, na sala, no quarto, na varanda, no jardim. Por idealizar e por contar! Sorrisos por despertar. Dores por sarar.
"O que ainda lhe falta dizer em prosa ou poesia?"
- Tantas coisas... Ainda não falei do inenarrável. Da agonia dos cumes da serra, vilmente açoitados pelos ventos de inverno. Do prazer das margens regadas pelos ribeiros, frescura que penetra a terra com a voracidade de quem faz um filho. Da insegurança do amante sucumbido ao êxtase.
- Recordo esse tempo e acho-me incapaz de impor ou mesmo sugerir o que quer que fosse. Talvez a irreverência falasse mais alto. Ou talvez esta insaciedade já me habitasse na época.
"Depois desta espécie de resumo da obra publicada o que lhe apetece fazer a seguir?"
- Falar mais da nossa gente, principalmente dos castigados por este Portugal tão desigual. Seguir nesta cruzada de dar voz aos que a não tiveram. Que ainda a não têm! Estou neste momento a contar a história de uma mulher que se atreve a mexer no destino e paga bem caro o atrevimento. Mas, sobre isso falaremos depois...
A GALOPE ENGULO OS DIAS
Esmago palavras
nas minhas mãos fechadas.
Escorre-me pelos dedos
a seiva acre de poemas
que não ouso escrever.
A galope engulo os dias.
Ardo por dentro. E os pés
em brasa tatuam pegadas
na estrada da solidão.
O ventre da terra
desfaz-se em horas ocas.
O rio ruma à nascente, buscando
uma brecha para recomeçar.
Francisco José Rito