Francisco José Rito
poesia, prosa e outros devaneios
Aprendi a arte
de te reconhecer na pradaria,
na magia dos canteiros floridos,
na frescura das cascatas,
no calor do sol de agosto.
A arte de te saber sempre por perto,
porque o teu amor de mãe é eterno,
e o meu de filho também.
As mães cheiram a limonete.
A alfazema. A amor.
E é na eternidade do seu amor que nos abraçam
de lá, da imensidão do Paraíso,
onde se entretêm a brincar umas com as outras,
às escondidas de nós.
Mas basta o suspiro de um filho
e é vê-las, vindas sabe-se lá como,
a embalar-nos a saudade.
Francisco José Rito
Joaquim Agostinho Miranda, prefaciador do livro “À procura do azul das coisas” de Francisco José Rito, foi locutor da Rádio Vizela e da Rádio Fundação.Atualmente integra o departamento comercial de uma grande multinacional. De uma conversa sua com o autor, surgiu esta (quase) entrevista:
"A poesia inspira o poeta ou o poeta inspira-se num desalinhamento com a poesia?"
- É o poeta que se inspira em momentos e sentidos nem sempre reais, nem sempre poéticos, porque as vidas nem sempre são belas. São por vezes ásperas, duras, cruéis.Ver poesia no rojar dos dias é privilégio de uns quantos, por mais tristes que os dias sejam. Ou não fosse a dor a maior musa.
“Quinze livros publicados, maioritariamente poesia e apenas um romance. Como se vê o Francisco enquanto escritor?"
- Um eterno inconformado, com quase tudo por dizer, sem se prender a géneros.
"Se hoje parasse de escrever, como definiria a sua obra literária?"
- Tudo o que escrevi até hoje poder-se-á comparar a uma casa inacabada. Se parasse agora de escrever ficaria a obra sem telhado, sem portas, sem janelas, e com tantas histórias por idealizar, na sala, no quarto, na varanda, no jardim. Por idealizar e por contar! Sorrisos por despertar. Dores por sarar.
"O que ainda lhe falta dizer em prosa ou poesia?"
- Tantas coisas... Ainda não falei do inenarrável. Da agonia dos cumes da serra, vilmente açoitados pelos ventos de inverno. Do prazer das margens regadas pelos ribeiros, frescura que penetra a terra com a voracidade de quem faz um filho. Da insegurança do amante sucumbido ao êxtase.
- Recordo esse tempo e acho-me incapaz de impor ou mesmo sugerir o que quer que fosse. Talvez a irreverência falasse mais alto. Ou talvez esta insaciedade já me habitasse na época.
"Depois desta espécie de resumo da obra publicada o que lhe apetece fazer a seguir?"
- Falar mais da nossa gente, principalmente dos castigados por este Portugal tão desigual. Seguir nesta cruzada de dar voz aos que a não tiveram. Que ainda a não têm! Estou neste momento a contar a história de uma mulher que se atreve a mexer no destino e paga bem caro o atrevimento. Mas, sobre isso falaremos depois...
A GALOPE ENGULO OS DIAS
Esmago palavras
nas minhas mãos fechadas.
Escorre-me pelos dedos
a seiva acre de poemas
que não ouso escrever.
A galope engulo os dias.
Ardo por dentro. E os pés
em brasa tatuam pegadas
na estrada da solidão.
O ventre da terra
desfaz-se em horas ocas.
O rio ruma à nascente, buscando
uma brecha para recomeçar.
Francisco José Rito
PERDIDOS
Um dia acordamos secos
e órfãos da fonte que nos saciava.
Os choupos cresceram e arderam
indiferentes ao carpir das nossas dores.
A canção que embalava ainda ecoa
mas calou-se a voz que a cantava.
Por vezes soltamo-nos das horas mortas
e cruzamo-nos com os resquícios
da felicidade que julgámos eterna.
Escrevo-te no sótão da casa
que não construí ao fim do caminho.
Ruíram as paredes por erguer
à espera da cor que nunca escolhi.
Felizes os capazes
de inventar um regaço
ou o par de braços abertos
que dificilmente encontrarão
quando a fresta da memória
apenas reflete os sorrisos
das tardes de infância.
Francisco José Rito
UM CARDO DISFARÇADO DE ALFAZEMA
Esta ânsia que sinto
é janela aberta
para um prado
sem cores e sem cheiros.
É uma miragem
um rosto
uma voz nos longes
um roce imaginado
um cardo disfarçado
de alfazema.
Esta ânsia que sinto
é um carreiro estreito
que acaba num muro
mais alto que o sol.
Nele me embrenhei
coração órfão
de gargalhadas roucas
e outros mimos.
Nele me perdi
nesta ânsia de perseguir
sonhos proibidos
e outras sinas.
Francisco José Rito
O amor é coisa para se perpetuar na alma
Se eu te pedisse
para me resgatares às malhas da insónia
saberias procurar-me na apatia da noite?
Penso que nem notarias
o desalento das horas mortas
em que o sol nos castiga e se esconde,
negando-se a corar-te as faces.
É mais seguro pensar-te sempre a meu favor
como as rosas brancas que nunca destoam
ou a brisa que refresca a planície sem derrubar os girassóis.
Prefiro acreditar
que se te rasgasse as paredes do peito
e te arrancasse o coração,
tu continuarias a amar-me
porque o amor é coisa
para se perpetuar na alma
e não na carne regressada ao pó.
Se eu te pedisse
para leres este poema
saberias decifrar os meus recados?
Francisco José Rito
Um breve segundo
Um segundo
é o tempo que demora o sorriso
a florescer-te nos lábios
num segundo
as palavras voam-te da boca
e circundam-me, mandarins coloridos
cantando ao desafio com os raios de sol
que te arruivam o rosto
um breve segundo
lapso de tempo em que mergulhas
no azul dos meus dedos
e o teu corpo desabrocha
como as hortênsias de maio.
Francisco José Rito
GRITOS DE BOCA
Cansámos a lua de tanto espreitara nudez dos nossos beijos
naquele serão molhado e frio
o mar cantarolava
a mais bela canção
desfile de vagas sorrateiras
babujando a falésia
os beijos, gritos de boca
rasgando o véu do silêncio
desfazendo-se nos lábios
como o sargaço nas coxas
e depois o êxtase
a explosão de estrelas nos corpos cálidos
e os olhares afogueados como tochas
a incendiar a escuridão da noite.
Francisco José Rito
FOSSES TU SERRA
Fosses tu serra
e eu subiria ao cume mais alto
para espreitar o infinito nos teus olhos
ou catar estrelas nas tuas faces ruivas
bradaria aos céus os versos que me inspiras
pássaros nadando no veludo dos teus lábios
peixes voando nas tuas mãos abertas
crianças brincando no azul dos teus sonhos
fosses tu serra
e eu seria primavera. E em ti pintaria
páginas de vida, antes que o inverno
caiasse o oiro dos teus cabelos.
Francisco José Rito
ABRAÇO AS PALAVRAS QUE DEIXASTE
(a Eugénio de Andrade, no dia do seu centenário)
Os teus versos despertam-me a alma
entardecida. Doiram-me o olhar
como os malmequeres no chão de abril
fecho os olhos e distingo-os
no chilrar dos melros nos ciprestes
cantando ao mundo os teus amores
e outras dores
abraço as palavras que deixaste
guardadas nos ninhos de andorinha
à espera do beijo que faça a primavera
acontecer nas bocas que não beijaste.
Francisco José Rito
O FOGO DA CARNE
Zarpemos na jangada azul
ao encontro da joia prometida
bebamos da taça exposta no altar do sangue
vertendo prata sobre os mais primários impulsos
morremos e entramos no céu dos amantes
quando mergulhamos no fogo da carne
e descobrimos os segredos que nos queimam
e com as nossas mãos construímos
a noite, a casa e a cama
onde nos rendemos à fúria do desejo.
Francisco José Rito
A IDADE ETERNIZOU-NOS NO INTERIOR DAS HORAS
Sorvo esta convicção
de que todas as ruas me levam a ti.
Que és a ponte para todas as margens,
sereia que (en)canta em todos os mares.
O trânsito parou nos labirintos da procura.
A idade eternizou-nos no interior das horas,
felicidade cinzelada no mais puro mármore
num relógio do tempo feito à nossa medida.
Há nos nossos beijos de fim de tarde
a robustez de um campo de papoulas
debruando-nos o azul dos lábios
com raios de sol poente e sabor a vinho novo.
Francisco José Rito
HAVEMOS DE SER SEMPRE MUDANÇA
Que sabemos da nudez do sol
que se espreguiça à flor da nossa pele dolente
sem saber com que voz choramos os íntimos prazeres?
Que sabemos do temor
que nos impele o ávido desejo
de sermos felizes depois da tempestade?
Que sabemos do pranto
dos lençóis da cama naufragada
nas tormentas de todos os bojadores?
E de nós, que sabemos?
Que a cada amanhecer regressamos ao inferno
de cabeça pousada na almofada de arame farpado,
urdida a ferro e fogo e a sonhos desfeitos.
Sabemos que para sobreviver teremos de ser mudança.
Que havemos de ser sempre mudança!
Francisco José Rito
ATÉ À PLENITUDE
Guardarei na memória
as faces morenas da tarde
com o tempo a abrir caminho
para o Éden prometido, mareando
um barco que ancorará à minha porta.
Os sinos tocam trindades
e ouvem-se sussurros e preces
como quem desfia contas de um rosário
(é a maciez dos lábios quentes
como os raios de sol de agosto
a engomar-nos o linho do desejo).
Nunca mais os sinos chorarão queixumes
sem que eu recorde o diluvio que te escorre da nuca
inundando-te os seios, o ventre e as coxas.
Nunca mais o vento soprará suão
sem que eu sinta o esvoaçar dos teus cabelos
a enxugarem-me o peito.
E agora que a lua te deu um nome de lagoa
nadarei na serenidade do teu azul
para lá de todos os feitiços,
até à plenitude.
Francisco José Rito