DEIXAI-ME SER TUDO O QUE HÁ EM MIM
Deixai-me ser mala aberta na chegada;
ser folha que voa e rodopia
e cai aos pés da árvore que a pariu.
Ser criança e correr como os dias de março;
como a espuma branca que se solta das vagas
e galopa pelo ventre das margens salgadas.
Deixai-me rolar nu sobre o verde das ilhas;
besuntar-me todo no azeite da terra
cair nos charcos, atolar-me nas talocas
saltar regueiras e fugir, desvairado,
como as velas fogem ao sopro do vento
e os homens fogem da má sorte.
Deixai-me inebriar-me de tardes outonais;
encarnar a alma desta terra
e ser-lhe os filhos todos que partiram.
Voar até ela e chorar-lhe no colo,
como choram os corações que vão para a guerra
ou os que enterram a mãe morta.
Deixai-me ser tudo o que há em mim;
ser pranto, ser canto, partida e regresso.
Perder-me e encontrar-me...
E depois, vestido de palavras,
voltar ao principio de tudo
e ser o mais belo poema.
texto de Francisco José Rito
imagem de Maggie Luijer
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