TORREIRA VIVA entrevista Francisco José Rito - Por Carlos Figueiredo.

Francisco José Rito nasceu na Murtosa, em Abril de 1969. Filho de gente humilde – um Pescador e uma Varina – cresceu e foi educado com a simplicidade que caracteriza as gentes da sua terra, num lar onde existiu sempre mais amor do que outros bens. Essa realidade acabaria por lhe vincar a personalidade e fazer de si um sonhador determinado.
Bem cedo a terra se mostrou pequena demais para tanta vontade de crescer, e por isso partiu um dia para o outro lado do mundo, onde se fez homem. Guardou as saudades da terra e dos seus, rasgou o coração e nele escreveu sentimentos que ocuparam os lugares cimeiros da sua vida. E fez promessas…
O tempo encarregou-se de gerir esta aritmética de subtracção e de soma, de lágrimas, perdas e vitórias. Lá longe, deixou que os dias corressem como os rios e levassem até ao mar todos os sentidos que, por vezes, foram perguntas sem resposta, emoções que enrolou na alma com os inevitáveis cansaços, mas sem nunca desistir do seu propósito; o de voltar um dia, para que terminasse aqui, o que aqui havia começado.
Quando por fim conseguiu desacelerar a corrida que os seus objectivos impunham, sobrou-lhe tempo para perseguir outros sonhos, por tanto tempo adiados. Compôs palavras em prosa e em verso. Falou de si e da vida, do amor, das penas, da família e dos amigos. E das raízes, essa nobre herança que nunca renegou…
Voltou por fim à sua Ria, como sempre sonhara, confidenciando-lhe a promessa: não mais a deixará!



Dois livros Editados, acredito que ambos te deram muito prazer em escrever… O que os difere? E como escritor que és já com alguma reputação no nosso país e comunidade emigrante como te sentes quando te encontras com as pessoas que te admiram? O que te dizem essas pessoas?

A diferença entre o “Um mar de sentidos” e o “Palavras litorais” é notória. Enquanto o primeiro é uma obra quase biográfica, o segundo fala mais da terra e das gentes. Homenageia o nosso passado recente, acabando também por apontar o dedo ao muito que perdemos, ou que alguns permitiram que se perdesse.
Encontrar-me com as pessoas que gostam de me ler é sempre um enorme prazer. É para eles que publico. Se não fosse a pensar nas pessoas, escrevia e guardava tudo na gaveta.
A esmagadora maioria dos autores não consegue viver da escrita; a recompensa acaba por ser a crítica e o carinho de quem nos lê. Ainda assim, o contacto físico com as pessoas ainda não deixou de ser difícil. Pensei que o tempo acabaria por dominar os nervos, mas não.
Continua a ser bastante mais fácil escrever, do que explicar os livros às pessoas. Nessas horas, não há elogios nem carinho que ajudem.

Sempre que falas da Murtosa, nota-se um orgulho imenso pela que terra que te viu nascer… “Palavras Litorais” será de certa forma uma homenagem a Terra e a uma população com a qual foste crescendo tanto culturalmente como profissionalmente?
Sim, tenho muito orgulho nas minhas raízes e sendo elas murtoseiras, não podia gostar de outra terra, mais do que da minha. Gosto da Murtosa, apesar de ela me ter sido madrasta. Sempre a defendi e elevei, apesar de não lhe dever nada. Porque a terra não tem culpa.
O “Palavras litorais” é acima de tudo uma homenagem, embora tenha também uma vertente didática, uma vez que fala de uma terra, de um povo e de um modo de vida que as gerações mais novas não conheceram mas que, a meu ver, devem estudar.
“Sem saber de onde viemos, como saberemos para onde ir?”

Já escreveste milhares de poemas e textos, seria interessante saber qual dos que escreveste é que mais te marcou?
O primeiro texto que publiquei. Chama-se “Pergunto por ti às pedras”. Fala de um local, de um tempo e de uma história que aconteceu de facto, e que me marcou.


Tem pouco tempo e através de ti tive conhecimento de um evento ” Noite de Fados” na junta da freguesia do Bunheiro… Tu como escritor, poeta e amante da cultura portuguesa como vês este tipo de eventos no nosso concelho? Até que ponto a CMM e as juntas de freguesia investem na cultura?
As Juntas de Freguesia não investem em nada, porque lhes falta autonomia e recursos.
A Câmara tem um Pelouro da Cultura (ainda tem, não tem?), que patrocina alguns eventos, sempre os mesmos e com os mesmos intervenientes.
Temos algumas associações que merecem o meu respeito pelo empenho e sacrifício, mas e o resto?
A cultura de uma terra não se pode limitar ao folclore e a meia dúzia de exposições no mês de Agosto. É preciso fazer mais e alargar a abrangência do apoio camarário. E por apoio não me refiro necessariamente a dinheiro.
A arte precisa de outros incentivos, como espaços, logística, ajuda na divulgação, etc… E principalmente, deve ser apoiada indiscriminadamente!
Se o fizerem, seguramente que deixaremos de ver sempre as mesmas caras, nos mesmos sítios. Pessoas que têm o seu valor, mas que não são únicas.

És uma das palavras activas do nosso concelho, um dos poucos que vai falando, vai de certo modo gritando em voz alta o que vai mal… O que te leva a isso?
O que me faz reclamar do poder local é o facto de eu ter saído da Murtosa há quase 25 anos e depois de tanto tempo, regressar e constatar que os motivos que me obrigaram a sair, ainda hoje se manterem.
Há quem defenda que hoje estamos melhor e faça disso um estandarte. E talvez estejamos melhor em alguns aspectos, mas quantos murtoseiros desfrutam disso?
Temos muitas rotundas e ciclovias, estradas alcatroadas e as margens da ria emparedadas a pedra e betão, mas continuamos a ser um Concelho fantasma, entre Setembro e Junho.
Saímos à rua a partir das 20:00 e não se encontra ninguém. Temos cais novos, mas não temos barcos. Temos escolas novas, mas temos poucos alunos. Temos muitas casas novas e luxuosas, mas estão fechadas. Temos restaurantes e outros negócios, mas que estão vazios durante a maior parte do ano.
Não sou retrógrado, nem me considero, de todo, bacoco. Vejo sinais de mudança, mas considero as prioridades bastante distorcidas.
Por isso falo. Por isso, não consigo apreciar a maioria das obras que se tem feito na Murtosa. De pouco nos servem, enquanto o mais importante não se fizer. Enquanto milhares de murtoseiros continuarem a ter de emigrar, como fizeram os seus antepassados.
A Murtosa tem todas as condições para ser auto-suficiente, mas na Murtosa os anos passaram, mudou tudo, menos o pensar pequenino.
Sim, fizeram-se muitas obras, mas o que a Murtosa realmente precisa – investimento na cultura local, como fonte de desenvolvimento e o incentivo à criação de postos de trabalho – ainda não foi feito.
Enquanto isso não acontecer, não esperem que eu me cale.

A Murtosa enquanto concelho nunca teve de certo modo uma política direcionada para a industria, na tua maneira de ver como se poderia alterar essa mesma situação, como se poderia investir de uma forma concisa e eficiente, para que a Murtosa deixasse de subsistir à custa de uma ria mais empobrecida?
A Murtosa precisa de uma liderança que governe por amor à camisola, acima de tudo. Que se preocupe em primeiro lugar com a população, sem partidarismos.
Precisa de políticos que saiam da terra, que visitem outras realidades, que abram os horizontes e que não se envergonhem de copiar o que outros fizeram bem. Que saibam dialogar e ouvir a população.
Precisa de um investimento coerente mas ambicioso, no desenvolvimento, através do aproveitamento dos nossos recursos naturais, da cultura e da nossa história. Criar a marca Murtosa e divulgá-la, mas agir em conformidade no terreno, não vender gato por lebre.
Precisa de atrair investimento privado, fazendo com que as pessoas sintam segurança para se estabelecerem na Murtosa, sem temerem o fantasma do Inverno.
A criação de postos de trabalho deveria ser uma prioridade em todos os orçamentos camarários. Mais no turismo, mas não só. Existe muita indústria não poluente que poderíamos atrair para aqui.


Todos sabemos que a nossa Terra vive da agricultura, da pesca e do trabalho sazonal em restaurante e afins… Que tipo de indústria poderia revolucionar a Murtosa?
Inicialmente falaste também em casas fechadas… Hoje em dia vemos muitos jovens a irem viver para concelhos vizinhos por vários e diversos motivos, verificando-se assim um abandono da população, a teu ver como se poderia combater essa mesma situação?
A principal fonte de receita da Murtosa terá de ser sempre o turismo, até porque como sabemos, 80% do nosso território pertence a áreas protegidas. Quer-se por isso uma aposta séria nesse sector, com regras, mas que facilite a vida de quem quer aqui investir, em vez de lhe cortar as pernas.
Atrair investimentos no turismo rural, que funcione o ano inteiro e que traga vida ao concelho. Apoiar as nossas tradições.
Se olharmos para a Nazaré, por exemplo, as mulheres ainda caminham na praia com as sete saias. Continuam a secar o peixe no areal, porque sabem que é isso que leva lá as pessoas.
Para ver areia e dunas, há muita praia no nosso litoral. As mais bem-sucedidas são as que mantiveram a tradição.
Aqui tínhamos a Arte Xávega tradicional, que acabou por falta de apoios, mas que tem de ser recuperada. Os Moliceiros têm de voltar a navegar regularmente, com passeios turísticos ao longo das nossas margens, apoiado por uma indústria hoteleira acessível e de qualidade, com alojamento digno a um preço justo.
Apoiar e incentivar as empresas de desportos aquáticos e outras que queiram aqui instalar-se. Melhorar as condições para o campismo na Torreira, mas também na Murtosa.
A zona do Cais do Bico está abandonada e podia funcionar muito bem com campismo. E com sombra! Os campistas querem praia, mas também precisam de sombra.
Actividades de Inverno, que sustentem os estabelecimentos. Retirar daqui os espanhóis e explorarmos nós a indústria de bivalves, com a criação de viveiros, também para peixe. Investir na horticultura, para frescos e para conservas, compotas e outras transformações, em vez de semearmos apenas milho.
Industrias não poluentes, mas que empreguem a população.

Vives na Torreira, como vês a Torreira hoje em dia, que presente? E que futuro?
A Torreira de hoje retrocedeu no tempo. Conheci a Torreira dos anos 80 e 90 e vejo com muita pena que estamos hoje muito pior que antes.
Tínhamos 2 discotecas, uma Assembleia que funcionavam o ano todo e deixamos que tudo acabasse. Transformaram a Vila numa estância balnear para os meses de Julho e Agosto, e mais nada.
A Torreira precisa de um recinto fechado, um espaço multiusos que permita actividades de Inverno. As galerias, a Arte Viva devem funcionar todo o ano, as feirinhas devem estender-se aos meses de Inverno.

De certa forma estás a querer dizer que a Torreira vive para os turistas? Porque sabemos perfeitamente que apenas no verão é que temos esse tipo de eventos…
Ao mesmo tempo que verificamos um défice de turistas de ano para ano, na tua opinião como se poderia combater esse défice e ao mesmo tempo dar aquele salto qualitativo que gostaríamos que tanto a Torreira como a Murtosa dessem?
Sim, basta sair à rua para se perceber que a Murtosa e principalmente a Torreira vivem 2 meses e sobrevivem 10.
Urge atrair pessoas nos meses de inverno. Uma piscina de águas temperadas, por exemplo, traria muita gente para aqui. A continuação das actuais “Noites de Verão”, ao longo de todo o ano, mas num espaço fechado. Cobre-se um preço justo que ajude a suportar as despesas, que as pessoas pagam.
Apliquem-se as medidas que aqui sugeri e outras, que outros sugiram. Escute-se a população, governe-se de acordo com os anseios e necessidades das pessoas, mas de todas. Inove-se, desenvolva-se… E veremos se as coisas mudam ou não mudam…

Francisco desde já muito obrigado pelo tempo aqui despendido e pela paciência, um muito obrigado da nossa parte. Para terminar… Que mensagem gostarias de deixar a todos os nossos leitores?
Se me permites, gostaria de dirigir-me principalmente aos mais jovens. Dizer-lhes que nunca desistam de lutar pelos seus objectivos, sejam eles menores ou maiores. E que não se deixem condicionar por circunstâncias. Se sonharam, lutem e realizem esse sonho.
Aos 43 anos de idade, olho para trás e sinto que vivi muitas coisas. Não me orgulho de todas, porque cometi alguns erros, mas encarei-os sempre como uma aprendizagem. Digo muitas vezes que na vida nunca se perde; quando não se ganha o pretendido, ganha-se pelo menos experiência.
Hoje reconheço que um dos meus maiores erros foi ter deixado de estudar aos 12 anos. Quando dei conta desse erro já tinha outras prioridades, e a escola foi ficando no rol das coisas por fazer. Mas ainda assim, tendo apenas a sexta classe, consegui alcançar tudo a que me propus. Nada me garante que seria uma pessoa mais feliz, se tivesse tirado um curso.
Hoje olho ao meu redor e cada vez acredito mais no seguinte: os homens fazem diplomas, mas os diplomas não fazem homens.
Gostava que o meu exemplo servisse de inspiração para tantos que, como eu, não tiveram oportunidade de tirar um curso. Que não se achem inferiores a ninguém. Ser-se doutor ou engenheiro é uma condição, não é uma garantia.
          Um abraço a todos.

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