Era vê-la, despachada a descer as Trinas, de mão na cintura e canastra à cabeça, apregoando os frescos que o mar dera nessa madrugada.
-Olhai que bela faneca, oh freguesas! Fresquinha do nosso mar!
Não havia na Madragoa figura mais airosa. O cachené brilhava-lhe caído pelos ombros, qual manto de cristal, onde o sol estampava a sua luz. O avental riscado e a cinta preta apertavam-lhe a anca, formosa silhueta que bailava alegremente pelas ruas de Lisboa, enquanto a blusa de chita as salpicava de cores garridas.
Viera da Murtosa, terra de muita graça, mas de pouco pão, onde a vida era ingrata, mas as gentes nobres e orgulhosas demais para se resignarem à sua sorte. Por isso, ela e tantas outras buscaram na capital o maná com que haviam de enfeitar a sua mesa e a dos que deixaram em casa.
Fê-la o destino nascer Varina, sina que abraçou e à qual obedeceu, enquanto as pernas lhe permitiram o escalar das sete colinas e a garganta resistiu ao cantar dos pregões.
Hoje já não canta, mas ainda encanta. No pátio onde mora não há ninguém que não conheça a Rosa Murtoseira, a mulher de palmo e meio, com o sorriso maior do que ela, que a todos cumprimenta com a mesma alegria, do alto da sua janela.
Por lá ficou, nas águas furtadas onde fez ninho, à par do Chico Madruga, o pescador que em tempos conheceu na Doca Pesca e que de tanto lhe puxar as fitas do avental, conseguiu "armar-lhe o laço".
Por lá fez a vida e os filhos, os pariu e educou.
À terra vinha a miúde, mas à morte dos pais e à partida dos irmãos para o Brasil, juntou-se a tristeza de olhar para as ruínas da velha Casa de Alpendre onde nasceu e se fez mulher, cobertas de silvas, entregues à má sorte do abandono.
Hoje já não ruma a norte, mas nos seus olhos ainda podem ver-se reflectidos a ria e o mar, que lhe habitam a alma e os sonhos.
-Lá vai a Rosa peixeira, com olhos da cor do mar, da Murtosa para a Torreira, sempre a rir e a cantar. Lá vai a Rosa peixeira, lencinho de cachené, alecrim na algibeira e chinelinha no pé; canta-lhe o Chico, nos dias em que se demora na tasca e chega a casa com um "grãosinho na asa".
E a Rosa sorri, vaidosa. Lembra o passado e orgulha-se das lutas e canseiras.
Tem saudades da lota e das freguesas. Os tempos eram de fome, mas alegres, e o trabalho animava-a.
Orgulha-se da coragem com que enfrentou e ultrapassou o infortúnio, sem queixumes.
-Pesou-me sempre mais a cruz da vida, do que a canastra; desabafa.
Se hoje algo lamenta, é o facto de já não lhe sentir o peso, ao cimo da nuca.
Francisco Vieira
-Olhai que bela faneca, oh freguesas! Fresquinha do nosso mar!
Não havia na Madragoa figura mais airosa. O cachené brilhava-lhe caído pelos ombros, qual manto de cristal, onde o sol estampava a sua luz. O avental riscado e a cinta preta apertavam-lhe a anca, formosa silhueta que bailava alegremente pelas ruas de Lisboa, enquanto a blusa de chita as salpicava de cores garridas.
Viera da Murtosa, terra de muita graça, mas de pouco pão, onde a vida era ingrata, mas as gentes nobres e orgulhosas demais para se resignarem à sua sorte. Por isso, ela e tantas outras buscaram na capital o maná com que haviam de enfeitar a sua mesa e a dos que deixaram em casa.
Fê-la o destino nascer Varina, sina que abraçou e à qual obedeceu, enquanto as pernas lhe permitiram o escalar das sete colinas e a garganta resistiu ao cantar dos pregões.
Hoje já não canta, mas ainda encanta. No pátio onde mora não há ninguém que não conheça a Rosa Murtoseira, a mulher de palmo e meio, com o sorriso maior do que ela, que a todos cumprimenta com a mesma alegria, do alto da sua janela.
Por lá ficou, nas águas furtadas onde fez ninho, à par do Chico Madruga, o pescador que em tempos conheceu na Doca Pesca e que de tanto lhe puxar as fitas do avental, conseguiu "armar-lhe o laço".
Por lá fez a vida e os filhos, os pariu e educou.
À terra vinha a miúde, mas à morte dos pais e à partida dos irmãos para o Brasil, juntou-se a tristeza de olhar para as ruínas da velha Casa de Alpendre onde nasceu e se fez mulher, cobertas de silvas, entregues à má sorte do abandono.
Hoje já não ruma a norte, mas nos seus olhos ainda podem ver-se reflectidos a ria e o mar, que lhe habitam a alma e os sonhos.
-Lá vai a Rosa peixeira, com olhos da cor do mar, da Murtosa para a Torreira, sempre a rir e a cantar. Lá vai a Rosa peixeira, lencinho de cachené, alecrim na algibeira e chinelinha no pé; canta-lhe o Chico, nos dias em que se demora na tasca e chega a casa com um "grãosinho na asa".
E a Rosa sorri, vaidosa. Lembra o passado e orgulha-se das lutas e canseiras.
Tem saudades da lota e das freguesas. Os tempos eram de fome, mas alegres, e o trabalho animava-a.
Orgulha-se da coragem com que enfrentou e ultrapassou o infortúnio, sem queixumes.
-Pesou-me sempre mais a cruz da vida, do que a canastra; desabafa.
Se hoje algo lamenta, é o facto de já não lhe sentir o peso, ao cimo da nuca.
Francisco Vieira
Texto magnifico sobre as saudades da terra, mas mais ainda das saudades da Vida!
ResponderEliminarCaro amigo Francisco;
ResponderEliminarMais um texto brilhante, magnificente; retrato de uma personagem da beira-ria em vias de extinção que as gerações vindouras poderão conhecer através deste testemunho, verdadeiramente sublime.
Parabéns.
Um forte abraço.
Meu querido Francisco
ResponderEliminarNão tenho palavras para comentar tanta beleza e vida que imprimite no teu texto.
Apenas digo...magnifico.
Beijinho com carinho
Sonhadora
Vc e seus textos lindos!
ResponderEliminarAdoro!!!
Bjs.
Este texto lindo parece música...
ResponderEliminarBeijo grande.