O MEU AVÔ RITO

Começo este texto invadido por dois sentimentos. Saudade, acima de tudo e ansiedade por ver o que vai sair daqui...
Como é que se fala de alguém que desapareceu na nossa adolescência e de quem temos apenas memórias? Só há uma maneira de relatar estas histórias, falar com o coração, mesmo correndo o risco de alterarmos de alguma forma a veracidade das coisas. Mas também, a quem vai importar se me enganar neste ou naquele pormenor? Não lhe vou escrever a biografia! Se não conseguir relatar fielmente a pessoa que foi, direi pelo menos a forma como o vi. Apesar da nossa curta convivência, foi um homem que me marcou muito, o meu avô Rito (Manuel Augusto Vieira Rito).
Registo já aqui a mágoa por se ter perdido no tempo o apelido "Rito" na minha familia. Acabou na geração do meu Pai, a quem já não apelidaram assim. Alguns dos meus tios ainda o mantêm, mas da minha geração e dos meus primos, ninguém o herdou.



Esta história servirá também de exemplo para aquelas pessoas que tudo fazem para esconder, disfarçar, camuflar de certa forma as suas raízes, as suas origens. Aqueles que teimam em nos fazer crer que nasceram em berço de ouro e que na sua família só existem rosas. Que não tiveram nunca parentes pobres, ou doentes...
Aos que os escondem da sociedade, por vergonha ou negação...
O meu avô Rito foi pescador toda a sua vida, na Ria de Aveiro, no Tejo, no Sado e nas traineiras de Matosinhos.
Um homem simples mas honrado, como já não existem muitos. Um lutador...

Baseio-me aqui nos relatos que fui ouvindo da boca dos meus pais, uma vez que o Ti Manel Rito (como era conhecido) faleceu quando eu tinha apenas doze anos.
Além disso, nos últimos dezoito anos de vida, sofreu de perturbações mentais, que lhe alteravam a personalidade e os comportamentos, embora tivesse muitos momentos de aparente lucidez, onde era ainda assim possível, detectar muitas das suas qualidades.
Veterano da primeira guerra mundial (1914 a 1918), de onde trouxe sequelas, algumas delas irreversíveis, que o acompanhariam toda a vida.
Quatro anos a combater uma guerra da qual nunca recebeu qualquer tipo de apoio psicológico ou monetário...

AS CARPAS
As perturbações mentais acentuaram-se mais a partir do momento em que ficou viúvo.
Tinha na altura mandado construir uma bateira de pesca, que usou ainda por vários anos, até que a evolução da doença o impediu de continuar nessa lide.
Depois do falecimento da minha avó, tocou à minha Mãe dar-lhe assistência doméstica, uma vez que ele teimou sempre em permanecer na sua residência. Também na venda do peixe que ele pescou ainda por vários anos. E assim foi por dezoito anos, até à hora da sua morte. A minha pobre Mãe, antes de sair de casa para o seu trabalho nos campos de arroz do Baixo Vouga, percorria quilómetros a pé com a canastra à cabeça, para lhe vender o peixe.

Segundo ela, as espécies variavam consoante as épocas do ano e dos locais onde ele pescava, e algumas espécies eram mais fáceis de vender, do que outras.
De todos os peixes, o menos apetecido eram as Carpas, que quase ninguém queria. A época das Carpas eram o seu "pesadelo", ao ponto de sonhar com elas, desabafa sorrindo. Para mal dos seus pecados, era o peixe que o meu avó pescava com mais abundância. Quilos e quilos de Carpas,que eram vendidas a dez tostões cada uma! (Diz-me agora o meu Pai que as tem visto à venda nas peixarias a seis euros o quilo).

Conta-me que uma vez, chegou de madrugada a casa do meu avô e deu com um enorme cabaz cheio das "benditas" Carpas. Como já no dia anterior se tinha visto aflita para as vender, pôs-se a "dizer mal à vida dela, entre dentes", pensando que ninguém a ouvia. Nisto sai o Ti Manel, que, enervado com os seus queixumes, pegou no cabaz das Carpas e o atirou para o meio da horta.
Com peso na consciência por se lembrar da noite de trabalho para as pescar, a minha Mãe lá lavou o peixe, encheu a canastra e fez-se à estrada para o vender.
Muitas vezes se cruzava com as colegas que iam para os campos de arroz e ela ainda carregada com a canastra das Carpas à cabeça e sem saber a quem as vender. Julgo ser por isso que eu não sei o que são Carpas. Acho que foi peixe que nunca entrou na casa da minha Mãe desde essa altura.



CAMINHEIRO
Apesar da tenra idade, mantenho absolutamente nítida a imagem daquele homem (como se o tivesse agora à minha frente). Sei que não é por fotografias suas que tenha visto, pelo menos nos últimos vinte anos, porque das poucas que existem, não tenho nenhuma...
Era a figura típica do pescador da Murtosa, com a camisa aos quadrados, as meias de lã grossa feitas à mão e o boné na cabeça.
Manteve esse estilo inalterável até ao dia em que deixou de caminhar, poucos meses antes de falecer.

Como já disse, apesar da doença, nunca ninguém o conseguiu tirar da sua casa, onde viveu sozinho, durante dezoito anos.
Lembro-me perfeitamente de lhe levar todas as manhãs uma sandes e uma garrafinha de aguardente com açucar. Foi o seu pequeno almoço até praticamente ao fim. Ao meio dia levava-lhe o almoço e à tardinha o jantar...todos os dias! Talvez por isso me lembre tão bem dele.
Nos dias em que estava mais perturbado eu já o ouvia, ao entrar a porta, deitado na cama, a falar com as suas "visitas" (como ele lhe chamava).
Manteve sempre ao alto com a cama um pau com que "expulsava os seus demónios" nas horas de maior perturbação.
As paredes em adobes do quarto tinham buracos que quase deixavam entrar os raios de sol...

Nessas alturas deixava-lhe o farnel em cima da mesa e apressava-me a sair da casa. Muitas vezes se esquecia de quem era, de quem éramos nós e do que éramos para ele... Nas alturas em que o via bem disposto, adorava sentar-me à sua mesa, a vê-lo comer, enquanto me contava as historias da guerra ou da época das traineiras e das safras no Tejo e no Sado, entre outras. No Verão, naqueles dias de maior lucidez, saía de casa de manhã para onde as pernas o levassem.
Adorava caminhar na borda d'agua e contemplar a Ria. Essa Ria que foi parte integrante de toda a sua vida. Essa Ria cujos cantos e recantos ele conhecia como ninguém. Essa Ria que toda a vida lhe deu o seu sustento e o do seu lar.

Uma vez alguém lhe disse que tinham construído uma ponte que ligava a Murtosa à Torreira, lá p'rós lados do Rubirosa, onde ele milhares de vezes tinha largado a chincha. Lembro-me de o ouvir dizer varias vezes que não havia de morrer sem "atravessar essa ponte".
Pois um dia estávamos em casa a almoçar e veio um vizinho, que acabara de chegar da Torreira, dizer-nos que tinha visto o Ti Manel Rito a cruzar a Ponte da Varela. Doutras vezes chegavam noticias de que o avistavam noutros lugares ainda mais distantes.
Com o passar dos anos fomo-nos acostumando a lidar com isso e ao facto de que, as pernas que o levavam para lá, traziam-no sempre de regresso a casa.



O "DURO"
Se me pudessem ver agora, dár-se-iam conta deste sorriso matreiro que me sai da alma, pela consciência de que essa foi a parte que me tocou de herança.
Diz-me a minha Mãe "se tivesses nascido depois da sua morte eu juraria que és a sua reencarnação"!
Reconheço que sim; Que me pareço ao meu avô, em muitos aspectos da minha personalidade.
Era de facto um homem que tinha tanto de nobre e sério, como de rude e duro, em todos os aspectos. As demonstrações de carinho eram tão raras, que havia que ter a capacidade de as identificar e desfrutar. Até porque , normalmente duravam pouco. Na azafama da vida então, dizem que era medonho!

Conta-me o meu Pai que, já na sua adolescência, o homem era não era para brincadeiras..."Uma vez estávamos os três, eu mais o meu Pai e o meu irmão Hélio, a bordo da bateira a largar a chincha, quando o meu Pai nos deu ordem para saltar para terra com o roceiro (corda que se amarrava nas extremidades da rede, para ajudar no arrasto, a pé, normalmente desde a borda)".
O meu Pai diz que hesitou, porque olhou para a água e não conseguia ver o fundo(deveriam ter uns 10 ou 12 anos). Por achar que era prematuro saltar ali, pediu-lhe que remasse mais para terra, até "terem pé" para saltar.
O meu avô deixou os remos, pegou neles os dois e atirou-os borda fora e depois atirou-lhes as cordas do roceiro!

SENTIMENTALISTA
Nunca se esqueceu daqueles a quem a morte lhe roubou, os dois filhos e a esposa.
Era visto muitas vezes no cemitério a velar os seus. Na casa tinha, além dos moveis que resistiram(uns foram-se degradando e outros que ele foi destruindo naquelas horas de "luta interna"), uma foto de um dos filhos (Manuel José), que faleceu com tuberculose (do filho António, que faleceu a bordo da traineira, e da esposa Rosalina, não me lembro de nenhum registo fotográfico, o que não quer dizer que não existam).
Essa foto do filho acompanhou-o muitas vezes nessas longas caminhadas que fazia (sabe Deus por onde).

Havia também lá em casa um crucifixo enorme, daqueles que se usavam na "sala do Senhor", que era usada apenas no Domingo de Páscoa, quando se abria a porta à Cruz, e quando falecia alguém da casa (era a sala onde se velavam os mortos).
Mais tarde, colocou o tal crucifixo ao lado da cama.
Nas tais horas de alucinação, por mais que uma vez abriu a janela e atirou com ele para a horta. Depois que recuperava alguns sentidos, arrependia-se e ia buscá-lo. Com o tempo o crucifixo perdeu o suporte e já não se aguentava em pé. Foi buscar um vaso ao jardim e enterrava a cruz na areia, na mesinha de cabeceira, ao lado da cama de ferro onde dormiu toda a vida e onde soltou o ultimo suspiro à 1:15 da manhã do dia 1 de Janeiro, de 1981, com oitenta e sete anos de idade.
Nunca entrou um hospital nem tomou qualquer tipo de medicina. Nunca o quis.
Até ao último minuto,esteve sentado à sua cabeceira o seu filho Francisco (meu Pai), que depois de se despedir dele, de o banhar e vestir, o transportou para a nossa casa , de onde foi a sepultar. Por fim abandonou a sua casa o Ti Manel Vieira Rito. Só assim o conseguiram tirar de lá!



O FIM .
Dedico este texto ao meu Pai, pela coragem.
(Não tenhas receio. Um filho e pai como tu, também não merece morrer só)

6 comentários:

  1. Francisco,

    O texto está, a um tempo comovente, e a outro de um realismo bem homenageado, com o toque final da dedicatória a teu pai.

    Só mostras quão grande também tu és!

    Abraaaaço

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  2. OLA AMIGO ESTOU MUITO ORGULHOSA DE TERTE COMO UM AMIGO E POR ESA VALENTIA TAO GRANDE QUE TENS EM ESCREVER ESAS LINDAS ESTORIAS REALES DA TUA VIDA SEGUE EM FRENTE QUE AQUI ESTAREMOS SENPRE PRA APOIARTE EM ESA VALENTIA FELICIDADES UM LINDO ABRASO

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  3. PARABÉNS PELA FORMA COMO ESSE CORAÇÃO TÃO GRANDE E TÃO "FRÁGIL" NOS TRANSMITE AS VIVÊNCIAS DA TUA VIDA.
    SEMPRE QUE PRECISARES... ESTOU AQUI !!!
    ABRAÇO ENORME

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  4. Sem dúvida que tu és o reflexo real dos teus antepassados.
    Humilde, Nobre, Realista entre muitas outras qualidades e acredita que tenho apreendido muito contigo.
    Ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente o teu pai mas sei que é exactamente como o descreves, com todas essas mesmas virtudes e qualidades.
    Já tive o prazer de conhecer três gerações da tua familia, a última foi a Matriarca e os poucos minutos que privei com ela percebi que foi muito bom que assim fosse porque consegui ver que realmente passou para as gerações seguintes, entre outros ensinamentos certamente, a Humildade, independentemente de todos os defeitos que cada um possa ter.
    Não te vou dar os Parabéns pelo que escreves porque sei que é um dom e sei que és muito feliz a escrever, daí que, a maior felicidade que tens é acordar e escrever relatando todas as tuas vivências de infância, recordando com muita alegria todos esses momentos.
    Bem Haja.
    Parabéns sim aos teus Pais, pelo Filho tão especial que colocaram neste mundo tão cruel.
    Até Breve...

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  5. Desde já lhe comunido que não tive tempo de ler o texto, mas virei depois com calma para o mesmo. Não podia deixar de agradecer sua visita.
    Obrigada.

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  6. Acho que me passei um pouco neste post
    pergunto-me se nao terei sido demasiado intimista, mas tambem, para que servem os sentimentos, se nao os podermos expressar?...
    Obrigado ao daniel pelas fotos Com que o ilustrei e obrigado a todos os que o leram, mesmo aos que nao comentaram

    Francisco

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Obrigado pela visita. Este espaço é seu. Use e abuse, mas com respeito, principalmente por quem nos lê. Francisco