EU E A RIA

O meu "namoro" com a Ria começou bem cedo, ainda na minha meninice.
Sou o mais novo lá de casa. O "rapinha do tacho" como se chamava lá na terra aos últimos filhos, os que vinham mais tarde, muitas vezes já sem serem esperados. Pelo que me apercebi por conversas "caseiras", eu já não estava nos planos realmente...
Bem, a história começa a ganhar algum interesse por volta dos meus cinco, seis anos. Pela diferença de idades, as minhas irmãs eram já mocas "casadoiras por essa altura (não que fossem de muita idade, mas lá na terra sempre houve a tradição de se casarem cedo). A rapariga que aos vinte anos não estivesse pelo menos noiva, já começava a notar-se alguma impaciência.

Aos Domingos à tarde o passeio da juventude era até à PRAIA DO BICO , conhecida também pela "praia dos tesos", por estar mais perto e mais acessível do que a verdadeira praia, PRAIA DA TORREIRA. A praia dos tesos era logo ali, na borda d'agua, banhada pela Ria.
Pensava a minha Mãe que eu podia dificultar a vida aos namorados das minhas irmãs se as obrigasse a levar-me com elas para a praia dos tesos. lá ia eu, sentadinho no porta-bagagens da bicicleta, sentado em cima de uma almofada, porque a antiga estrada de paralelos não era propriamente uma ciclovia e os saltos da "ginga" davam cabo do traseiro e das pernas de qualquer um...

O que a minha Mãe não sabia era que, chegados ao BICO, eu me entretia a pescar caranguejos sentadinho no cais, com um rabo de bacalhau salgado amarrado a um cordel (não me lembro de onde vinha a isca, mas calculo que da taverna da Ti Pastora), enquanto as manas passavam a tarde nas "rodas" a jogar ao "lencinho-lenção", ao "pisca-olho", ou a namorar na borda d'agua...A PRAIA DO BICO hoje está urbanizada (não necessariamente mais bonita), mas naquele tempo era só o areal e o largo de terra batida. Nas beiradas da praia crescia a erva com abundância, um Paraíso para os casais de namorados.


O sossego das minhas irmãs terminava quando algum caranguejo me mordia os dedos e lá ia eu aos gritos procurar por elas. Os namorados bem que tentavam atenuar a situação dando-me uns 25 tostões para eu ir comprar pipocas ao Ti Ângelo Maia ou para ir gastar ao café do Ti Zé do Bico, mas era sol de pouca dura, porque eu engolia os rebuçados "enquanto o diabo esfregava um olho".
Quando menos esperavam, lá estava eu outra vez a "sarnar-lhes a alma".
De certa forma, acabava por surtir efeito a intenção da Ti Angelina (minha querida Mãe)...

Dois ou três anos mais tarde volto eu à Ria, desta vez já por vontade própria e por meus próprios pés. Estava já na 3a ou 4a classe quando eu e mais uns quantos "gandulos" lá da rua descobrimos os prazeres de nadar na COVA do CHEGADO.
Escondiam-se os livros na viela da Tia Ana Rabela (herdou a alcunha de tia por ser solteirona) e na vez de ir a escola, lá ia-mos nos nadar para a Ria.
Também não nos durava muito a festa! Era só baterem as 15:30 no relógio da igreja, que as nossa Mães já começavam impacientes a contar os minutos que demorava-mos entre a escola e a casa. Não tardava muito até se começarem a ouvir ao longe os gritos delas que entoavam por aquelas terras da AVILHOSA : Oh Francisco, oh Venâncio, oh Gonçalo...(o Gonçalo infelizmente já não está entre nós...o Venâncio nunca saiu da rua.)
Era um "ver se te avias" cada um para o seu lado a recolher as calcas, os sapatos e a correr por aqueles campos fora a ver se conseguíamos apanhar os livros e chegar a casa primeiro que elas.

Não há dinheiro no Mundo que pague estas memorias, nem alegrias ou amarguras da vida que as consigam apagar.
Anos mais tarde voltava eu a Ria para a apanha do burrie e da ameijoa...
Digo anos mais tarde porque neste intervalo entre os 9 e os 13 anos aconteceu um episódio que teve tanto de assustador como de bizarro e que de certa forma nos interrompeu o "namoro".
O meu Pai tinha um Tio (o Tio Tomás). Um homem já de idade avençada, mas duro como pedra.
Era o seu camarada de pesca. Tinham várias artes (tipos de rede) de pesca na Ria, entre elas as BRANQUEIRAS, uma rede usada para apanhar Robalos e Tainhas.


Uma noite vou eu com eles "largar" as BRANQUEIRAS ali p'rós lados da Ponte da Varela.
Abalamos do cais do Bico por volta das 20 horas, a remos, virados ao Norte. Por volta das 21:30 ja tinha ido a rede à agua e os primeiros lanços até correram bem.
Tinha sido uma Maré e tanto, não fosse o nevoeiro que nos começou a cercar e que nos deixou completamente sem noção de onde estávamos.

Foi uma noite inteira a remar sem saber para onde. Ouviam-se os cães a ladrar, de um lado e do outro da Ria, mas descobrir terra, nem em sonhos.
Fomos dar com terra por acaso porque a Bateira deu em seco ali p'rós lados de Monte Farinha, quando já eram 9 horas da manhã.
Moral da história : Andamos 12 horas com os remos na mão e quando demos com terra estávamos a 2 quilómetros de onde tinha-mos "perdido" o norte.

À conta disso, andei 5 ou 6 anos que não queria saber da Ria para nada...
Ate que a minha irmã Júlia começou na apanha do burrie e da ameijoa.
Quis Deus ou a vontade do meu Pai que eu não precisasse de procurar naquelas Águas o "pão nosso de cada dia", por isso quando recomecei as idas à Ria, era mais para fazer companhia à minha irmã e a outras (os) lá da rua,do que por outro motivo qualquer.
Era uma alegria! Todos de bicicleta da Gafanha baixa até aos Ameirinhos (Bestida), passando pelo Ribeiro e pela Ribeira de Pardelhas...



Quando a Maré começava a "bazar" estava na hora de começar a travessia com a água entre os joelhos e o peito, até praticamente aquele fundão que havia já do lado da Torreira (hoje esta toda enlameada aquela área). a travessia durava mais ou menos uma hora e enquanto uns nadavam, outros(as) cantavam, entre outras brincadeiras...Era por isso que eu ia. Não era pelo burrie que apanhava, porque não me lembro de alguma vez ter apanhado mais de 1 kilo por Maré.

Um dia fui só com a "minha Júlia". Nunca tinha-mos visto tanto burrie e ela entusiasmou-se de tal forma que perdemos conta das horas e da subida da Maré.
Quando nos apercebemos do perigo estávamos no meio da Ria com a agua a subir a toda a força e com a travessia até aos Ameirinhos ainda por fazer...
Vimos a morte pela frente naquele dia, mas não perdemos a coragem. Perdeu-se o marisco porque a força das correntes já não permitia trazer nada, mas a vontade de viver e a ajuda de Deus trouxe-nos até terra firme.
Creio que se alguma vez sentimos o quanto éramos indispensaveis um ao outro, eu e a minha irmã, foi naquele dia.

Escrevo-vos estas palavras com os olhos rasos de água, com a certeza de que a minha mana não vai conseguir conter também as lágrimas na hora que ler isto...
E pronto amigos... Fico por aqui em relação à Ria, mas só por agora! Entre mim e ela tenho mil e uma histórias para vos contar... Até breve. Um abraço

1 comentário:

  1. Anónimo16/4/09

    Aqui começou saga.
    Da paixão dum namorado,
    Valorosa confissão!
    Que nunca houvera pensado.

    Tradições e sentimentos,
    Saudades, mudos lamentos,
    Dessa Ria e seus ventos,
    Meninice de outros tempos.

    Agora homem formado,
    Por ora terá deixado,
    Sua terra, seu valado,
    Por tempo indeterminado.

    Para poder desfrutar,
    Do que lhe não podia dar,
    Se teve de separar,
    E essa perda chorar!

    Alma terna e sofrida,
    Em vinte anos vivida,
    Sem de perto a Ria amar.
    Almejo de para ela voltar!

    Filho esse abnegado,
    Um dia será abençoado,
    Por força de adorar,
    Seu paraíso mostrar.

    Caminho calcorrear,
    Com a força de querer,
    Nova forma de lutar,
    Se o coração doer!

    Tomemos também essa saga,
    Com este homem corramos.
    A quem se quer não se larga,
    Não se renega o que amamos!

    Fica aqui a petição,
    De valores, de tradição,
    Gritemos de coração
    A terra é amor, é pão!


    Manuel Bastos
    Arouca, 25 de Janeiro de 2009

    ResponderEliminar

Obrigado pela visita. Este espaço é seu. Use e abuse, mas com respeito, principalmente por quem nos lê. Francisco