"ARRAIAL - o fado de cada um" é um drama em dois actos, que será encenado ainda este ano, pelo grupo de teatro amador "Os Meninos da Lagoa".
Sairá também em livro, que tem apresentação marcada para a tarde de sábado, dia 27 de Julho, na Oficina de Artes da Murtosa.
PREÂMBULO:
Decorre a vida, pacata, na aldeia. Nunca falta que fazer a quem vive do que a terra dá, ou do que consegue roubar às águas do mar e da ria. Há trabalho para os homens e para as mulheres, para velhos e para novos, e até a pequenada ajuda nas lides. Um ritual saudável e justo, porque quando o pão vai para a mesa, é para todos!
A vida é alegre e pura. Não faltam ralações, é certo, mas nem essas impedem o povo de cantar e ser feliz. Com pouco se contentam os que pouco têm… Há fremas e canseiras, mas também há festas e romarias, que enchem a alma dos nossos e dos que nos visitam.
E é em maré de romaria que esta história acontece. Festeja-se o dia do Padroeiro. De Lisboa vem uma cantadeira afamada, contratada pela comissão de festas. Alexandrina é uma quarentona bonita e “bem arranjada”, pormenor que se realça, se a compararmos com a simplicidade das mulheres da terra. E é solteira!
Escusado será dizer que a sua chegada põe os rapazes em alvoroço. Seguem-se dias de emoção, e não só para os solteiros. Mesmo “amarrados”, homens serão sempre homens!
O drama começa a ganhar forma com a chegada da cantadeira, apesar de já antes disso a sua vinda ser assunto, tanto entre as mulheres que lavam no rio, como entre os homens que jogam à malha, à porta da taverna.
Alexandria chega e passeia-se pela aldeia, esbanja encantos e provoca invejas. Os rapazes olham-na de olhos arregalados. As moças solteiras tiram-lhe o molde ao penteado, as medidas ao decote e aos saltos dos sapatos.
E não é que, de todos os homens da terra, é Manuel, homem casado e pai de dois filhos, quem primeiro desperta o interesse da forasteira?
A história prossegue, entre cantorias e conversas – que começam no lavadouro e passam pelo balcão da taverna, até ao executar das mais variadas tarefas – e as “escapadinhas” do Manuel, que tenta acercar-se de Alexandrina, mas sem sucesso, porque Gonçalo – o filho mais novo – a mando da mãe, não o deixa rabear.
Alexandrina canta, primeiro pelos campos da aldeia e depois, à noite, no largo da praça. E quanto mais canta, mais encanta a Manuel, que já não consegue disfarçar o seu deslumbre.
Alheia ao desvario do marido, Alice alimenta uma certa rivalidade com Alexandrina, mas apenas para provar que as moças da terra, apesar da sua simplicidade, também sabem cantar e encantar! E também ela canta, Fado e Folclore, para alegria das outras mulheres.
Confirma a mudança de comportamento do marido, depois da partida da cantadeira. Serafim bem tenta chamá-lo à razão, mas Manuel está louco e decidido a largar tudo, para ir à procura da trigueira que o enfeitiçou.
E vai! Deixa “barcos e redes”, os filhos que choram e a única mulher que conheceu como sua, mas para quem agora já nem suporta olhar.
O segundo acto acontece já em Lisboa, com Manuel a encontrar a musa que o cativou e a quem promete felicidade eterna. Só que, nas suas costas, chega Alice, com um filho de cada lado, agarrados às fitas do avental. Vai para casa de uma tia que tem por lá, decidida a lutar pelo que lhe pertence. Procura Alexandrina e apresenta-se.
É com a chegada da mulher e filhos de Manuel, que a cantadeira ganha noção do imbróglio em que está metida. Estuda a melhor forma de gerir a situação e orquestra um plano para o reaproximar da família. Sendo que foi o Fado que o atraiu, será através do Fado que Alice o reconquistará. Organiza um serão no pátio aonde vive, e senta Manel na primeira mesa. Depois de cantar ela, chama ao palco alguém que veio de longe, para se estrear naquela noite.
Para grande espanto de Manuel, a convidada é Alice, que aparece irreconhecível e lhe canta o fado mais bonito que ele alguma vez ouviu.
Juntam-se-lhe os filhos. Quando Manuel olha ao seu redor, repara que nas outras mesas estão também os amigos da terra, que vieram para apoiar Alice.
Conversam. Alexandrina explica-lhe que o seu “fado” é outro e que o seu lugar é na terra, ao lado da mulher e dos filhos. Manuel pensa na vida e acaba por lhe dar razão. Bem vistas as coisas, já ele tinha lá na aldeia o que veio procurar à cidade. E dentro da sua própria casa!
Pede perdão a Alice, que o recebe de braços abertos, como se do primeiro abraço se tratasse. Abraço compartido com os dois filhos, numa cena que poderá ser a mais emocionante de todas...
Tudo está bem, quando acaba bem. E esta peça acaba da melhor maneira possível, com as duas cantadeiras a cantar juntas o “Arraial”, enquanto a assistência arreda as mesas e dança – no pátio alfacinha – como se estivessem no terreiro da aldeia.
Pelo meio, há comédia, tanto em algumas cenas da aldeia, como na chegada de Alice e dos filhos a Lisboa.
Há também drama. E fé. Alexandrina é devota da Senhora da Saúde, que venera e leva consigo para todo o lado.
Alice tem a mãe, Laurinda – já falecida – como seu anjo da guarda. E a morta entra várias vezes em cena, contracenando em surdina com a filha, ou com os netos.
Em terra marcada pela emigração, não podiam faltar influências de outros povos, sentidos aqui por variados sotaques e personalidades. “Maracaio”, que é regressado de Venezuela, “Tonico” que andou pelo Brasil e o “Camone” que veio das Américas. É hilariante vê-los ao balcão, num quadro multicultural e castiço.
Pelo meio, há ainda espaço para desafios e rivalidades, tanto entre as mulheres como entre os homens, que chegam até a envolver-se numa sessão de pancadaria, à porta da taverna.
A peça desenrola-se em dois actos, com um intervalo para troca de cenários. Exige guarda-roupa cuidado e um bom apoio logístico nos bastidores, porque algumas personagens mudam de roupa várias vezes e uma das actrizes até “encarna” outra personagem. Requer trajes de trabalho, mas também de passeio e até “roupa de palco”, no caso de Alexandrina e de Alice.
Para cenário, o autor sugere um ambiente rural para o primeiro acto, com a recriação de um lavadouro que poderá ser na margem de um ribeiro ou edificado no centro da aldeia, várias alfaias agrícolas para as personagens que trabalham no campo e uma taverna para os homens, onde estes possam beber um copo e jogar à malha.
Evidenciando a etnografia, usos e costumes da terra, aparece-nos a roda do amolador, bem como uma carroça e um burro, que terá por tarefa transportar a cantadeira, desde a paragem da camioneta da carreira mais próxima, até ao centro da aldeia.
O autor situou a história em 1970. “Salazar já caiu – primeiro da cadeira e depois do governo – mas o país ainda continua dominado pelo regime e influenciado pelas leis da igreja. Se nas grandes cidades a vida não é fácil, no Portugal profundo em que nos encontramos, tudo é bem pior. Perante um enraizado machismo dos homens e o preconceito da população em geral, a virgindade de uma jovem é a sua maior arma. Bem pode o homem correr e saltar, porque enquanto a mulher preservar a sua honra, será sempre dona e senhora do seu destino. Perdendo-a, perde grande parte da sua autonomia e dignidade. Recupera-a, se chegar a casar, mas se tal não acontecer, ficará à mercê da boa vontade de quem não se importe de ir buscar o que outro deixou. E não é qualquer homem que tem essa capacidade.”
Esse preconceito, que – para as últimas gerações – poderá até parecer anedótico, é claramente referenciado nesta peça, porque existia. Existia e manteve-se ainda por bastante tempo, até se extinguir na evolução do tempo e das coisas, num passado não muito distante...
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