CHAMAM-ME
LOUCA
Estou
nua no meu quarto. Olho-me ao espelho e não vejo nada que se
assemelhe a mim.
Surpreende-te
que esteja nua? Por vezes visto-me de inox, ou de arame farpado, mas
normalmente caminho nua, pelos labirintos do quarto onde me escondo,
tentando descobrir com qual dos sentidos me sinto vazia.
Rebolo-me
no chão, enterro as unhas nas cortinas e atiro-me contra a parede,
nesta vontade louca de voar daqui.
Oiço
estampidos do outro lado da rua e tranco-me na minha gaiola de ferro
fundido. Respiro fundo. Dos meus lábios soltam-se nuvens de
borboletas ruivas, que se espraiam na ramada de kiwis maduros e vão
embriagar-se na piscina a transbordar de vodka com laranja, no harém
da minha loucura.
Que
tontas são… Exibem as asas, como quem desfila numa passerelle! Não
sabem que entre o céu delas e o meu inferno existe uma linha ténue,
um saltito de pardal, que tanto as pode elevar ao infinito, como
atirar para o precipício dos tristes dias de inverno.
Estão
bêbadas! Só alguém em absoluto estado de ebriedade pode achar que
existe neste mundo alguma réstia de felicidade, para além da que
mora nos sonhos dos loucos, ou nos versos dos poetas...
Em
bicos de pés, espreito pelo laminado da janela. Lá fora, os putos
saltam à corda e comem gelados, completamente alheios aos perigos
que só eu pressinto; este receio de que me atirem pedras às paredes
e me abram fendas pró mundo.
Olha,
uma borboleta esgueirou-se pela frincha da janela e ficou com as
pontas das asas todas chamuscadas! Eu não digo?! E agora, que lhe
faço? Não devia deixá-la entrar... Sei lá se vem contaminar-me o
pouco ar que me resta...
Espreito…
Os olhos secos e frios mergulham na escuridão do meio-dia, e nem um
único candeeiro ilumina a calçada.
Estou
cega. Rastejo, às cegas. Assusta-me o burburinho das ruas cheias de
gente, dispersando-se no pátio e nos corredores deste castelo de
falsos prazeres, que me enclausura.
Corro
até ao hall de entrada, mas não me atrevo a passar daqui. Ei-los,
berrando o meu nome! Sei que me perseguem, mas não olho para trás.
Socorro,
querem levar-me! Vou esconder-me na casinha das bonecas. Será que me
confundem com uma delas? Conseguirei enganá-los? Ai, que não me
cabem os pés! Cortem-mos, porra!!!
Daqui
não saio. Para onde iria, se não conheço nada? Apenas aqui me
sinto segura.
Lá
fora tenho tudo e nada possuo. Nunca fui dona de mim. Comando apenas
a rédea deste cavalo alado, que me transporta até onde consigo
arrastar a imaginação.
Leva-me
e traz-me, embrulhada numa manta de purpurina, que me dissimula no
meio das outras estrelas. E quase sempre sou bem sucedida na arte de
enganar os que se cruzam comigo...
Eu
não faço parte do mundo deles. Não me ensinaram a escutar o canto
dos pássaros e os gritos que me embalavam os sonos de menina,
foram-se diluindo nas lágrimas que chorei.
Hoje
já não choro, mas também não sei sorrir. Esqueci-me de como vivem
os que se dizem humanos. Não distingo o choro dos velhos, do riso
das crianças. Não conheço o calibre das armas nas mãos dos
homens, nem sei porque as disparam. Sei apenas amá-los e
desarmá-los, de alma armada com as lembranças do tempo em que
colhia flores de papel na beira do rio e saltava para cima dos
telhados de vidro dos outros, sem medo de castigos divinos, dos gatos
ou da trovoada.
Mas
um dia… Um dia, Zeus – rei de todos os deuses – cobiçou as
pepitas de felicidade que jorravam dos meus olhos morenos e enviou
dos céus uma lança de diamante, que trespassou os prados da
inocência e veio cair no meio das minhas pernas.
Foi
aí – hórrido momento – enquanto as nuvens tocavam tambores e os
cães uivavam de agonia, que me vi rodeada por milhões de aranhas e
escorpiões. Arrastaram-me por pedras e calçadas, a conhecer todos
os cantos da terra; cruzando muros e fronteiras, rios e oceanos;
vendo todas as feridas, ouvindo todos os ais, pelos olhos dos cegos e
pelos ouvidos dos surdos.
Depois,
puxou as calças até à cintura e abotoou-as, bateu a porta atrás
de si e saiu, sem sequer olhar para o emaranhado de dores que jazia
prostrado na minha cama.
Eu
disse cama?! Ohhhh… Eu nunca tive uma cama... Eu nem sequer cheguei
a ser criança! Se algum dia corri sorridente por campos de lírios,
já não me lembro.
Não
me lembro de não sentir medo. Lembro-me apenas dos mil fantasmas que
dormiram comigo; dos seus gemidos roucos, que aprendi a decifrar e
que hoje canto, com a voz deles.
Quando
vou lá fora, o céu junta-se à terra, para me encurralar. Toda a
gente deseja um pedaço de mim, sem saberem que eu nada tenho para
dar!
Chamam-me
Louca. Não sabem que, se não me disfarçar do que não sou, não
consigo ser eu.
texto de Francisco
José Rito
imagem de Carlos Silva
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