A LIDA


A casa é quente e acolhedora, mas vai denunciando o passar dos anos. Paredes de adobe, unidos entre si com barro e cal, amassados [quantas vezes] com suor e lágrimas. As heras crescem nas paredes e o musgo nos beirais, onde na primavera as andorinhas fazem ninho, prenhes de felicidade.
Algum pardal soltou do bico uma semente de dióspiro que se entranhou numa das brechas da parede do quarto e de onde nasceu uma árvore que cresceu mais alta do que a chaminé, que todos os anos carrega dos suculentos frutos. Ninguém se atreve a cortar tal maravilha da natureza, seguramente abençoada pela mão de Deus.
O sol chega com a alvorada e reflete-se nas quatro janelas viradas a nascente. Ao abrir das folhas de pinho, os seus raios dispersam-se como labaredas, incendiando os quatro cantos de cada divisão e toda a casa desabrocha numa aguarela de cores e perfumes. Das paredes caiadas, dos soalhos encerados, das mantas de tiras e dos colchões de palha, soltam-se fragrâncias que cheiram a labor. Acentuam-se as cores do Sagrado Coração de Jesus, pendurado na parede e do crucifixo em cima da cómoda da Sala do Senhor, da mesa da cozinha, das cadeiras, da masseira e da panela de cobre, que brilha orgulhosamente na laje da lareira.
Lá fora, o passaredo acorda o mundo com o seu canto e nos parapeitos ainda molhados, os pombos bebem as últimas gotas de bruma. De dentro de casa vê-se por vezes o céu azul, ao amanhecer das penosas noites de vendaval, que sacode as paredes e as velhas traves do telhado.
-O vento arrumou outra vez os canelos! É preciso ir lá acima compô-los, antes da próxima chuvada. Os soalhos foram encerados pela Páscoa e têm de aguentar os doze meses. Uma goteira a pingar-lhes em cima não lhes faria nada bem.
Mais um encargo para Joaquim (o filho mais velho) quando chegar de Matosinhos, onde trabalha nas Traineiras com o pai e outros homens da terra. Tem de ser. O campo dá-lhes o sustento, mas para mais não chega.
Gonçalo, o mais novo, já quis subir ao telhado mas tal foi-lhe proibido. Por ter a perna pesada, acabaria por partir mais telhas do que consertava!
Os animais começam a mostrar sinais de impaciência - É preciso alimentá-los, para que nos alimentem a nós, pensa Maria, enquanto aquece uma cafeteira de café, em cima do borralho ainda quente, que resistiu da noite anterior.
Ao abrir a porta faz o sinal da cruz, para que o dia corra sem grandes sobressaltos. Despeja um balde de água na pia dos porcos, com as cascas das batatas do jantar. Atira quatro folhas de couve e um punhado de milho ao gado de bico. A bezerra passará hoje com um braçado de palha seca, porque o feno está encharcado e a terra atoladiça. Ao gato tocou-lhe as espinhas dos carapaus cozidos na véspera. O cão terá que esperar pela hora do almoço, para comer uma ponta de toucinho e uma côdea de pão, migada nalgum resto de sopa, que em breve irá ao lume.
Volta à cozinha. Gonçalo já se levantou e também quer comer. A sorte é que os filhos que Deus lhe deu, são de boa boca. Também não têm a quem sair a serem debiqueiros. Uma malga de café e uma talhada de broa, barrada com sebo de vaca derretido com açúcar e canela, uma receita que herdou da falecida mãe. Alimenta e ajuda nas constipações, por ser peitoral.
Gonçalo já não vai à escola, mas os seus 12 anos não lhe permitem ainda avançar para a faina, com o pai e o irmão. Ficará por casa pelo menos mais um ano. Ajuda a mãe na horta. Não falta o que fazer em casa de pobres. Da vontade de trabalhar depende a sua sobrevivência, porque é do trabalho que sai tudo.
Maria deixou a monda do arroz para ficar em casa a criar os filhos, mas nem por isso deixou de produzir. Tirando a barrica do peixe salgado atrás da porta, que é tarefa do marido, tudo o que vai para a panela sai-lhe dos braços.
Cavar a terra também pertence aos homens da casa, mas semeá-la é trabalho seu. Couves, batatas, abóboras, feijão, alhos, cebolas...nunca lhe falta o que por ao lume, a acompanhar o conduto que ela também cria.
Cabem-lhe ainda na horta uns regos de milho e de cabaças, que hão-de alimentar a criação.
Depois do almoço é tempo para lavar as peças de roupa que estão de molho numa barrela de sabão azul. A Gonçalo, por estar em crescimento, a roupa é por vezes escassa, o que a obriga a lavar mais amiúde. A sorte é que o ribeiro passa-lhe mesmo por detrás da casa. Uma hora a lavar e duas a corar, uma boa tarde de sol e fica-lhe o problema resolvido. As roupa interiores são de flanela, fáceis de dobrar e guardar, porque o tempo é pouco para lhes passar o ferro, além de que as brasas consomem muita lenha.
Depois que o pai e o irmão as deixam de usar, ainda levam uns remendos, e cabe ao Gonçalo acabar-lhes com a raça. Que remédio! O petiz bem se queixa de nunca ter estreado umas ceroulas novas, mas de nada lhe serve o lamento.
- Ai Gonçalo, Gonçalo... ainda te falta aprender o que a vida custa, filho!
Incutiram-lhe esses valores e ela não conhece outra maneira de viver. A vida nunca lhe permitiu desperdícios e como lhe ensinaram os antigos: enquanto vai o velho, folga o novo.
A meio da tarde, quando os caminhos estão mais enxutos, vão ao campo e esgravatam por onde podem alguns cavacos para acender a lareira e o forno, onde à sexta-feira coze o pão. Faz dois molhes que carregam nas costas, de regresso a casa, antes que toquem as trindades e o sol se ponha.
Não lhes falta nada. Comem o que a terra dá e o que mar permite roubar-lhe. Vivem sem mimos, mas os seus filhos nunca souberam o que foi deitarem-se na cama de barriga vazia.
Por isso esta lida que a desgasta. Para os livrar da fome que ela em tempos passou, e viverem sem vergonhas no mundo...

 texto de Francisco José Rito
fotografia de Paulo João



 


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