MULHERES DA BORDA D´ÁGUA

Como diria Monteserrate Cano, a escritora espanhola que tão bem descreveu as mariscadoras galegas, são “sereias trabalhadoras”.
E são! De facto, não têm caudas prateadas e os seus longos cabelos não esvoaçam ao vento; não mostram os seios nus, mas ainda assim, encantam o olhar de quem as vê, na azáfama de esgravatar o seu sustento.
Não se espraiam nos cabeços acetinados por algas verdes, nem cantam para seduzir os marinheiros.
Os seus movimentos são manobras de saber, fruto de uma herança, a que obedientemente chamam sina.
Qual aguarela de cores garridas, é um regalo para os olhos, vê-las inseridas na paisagem matinal, junto com os Flamingos, as Garças ou os Perna-longa, com quem partilham as margens, em busca de alimento. De joelhos no areal, ou parcialmente submersas na água, de costas dobradas ao sol, saco amarrado à cintura, onde depositam o pão que a firmeza dos seus dedos consegue roubar ao leito da Grande Laguna.
Os seus cantares nem sempre são misteriosamente encantadores; são muitas vezes desabafos, do peito ou da alma, mais ou menos inspirados pela inconstância da sua condição.
Independentemente da margem a que nos acercamos, a visão é sempre a mesma; fazem do estuário o seu terreiro e lutam com as vagas mais ou menos revoltas, num bailado de movimentos, que só termina quando a maré decide recuperar o que é seu e as expulsa do ventre da Ria.
São as mulheres da borda-d’água, filhas da maresia e de uma sorte que se fez tradição. Mas são também mãe e pai dos filhos que Deus lhes deu, quando os maridos se ausentam para outras paragens, deixando-lhes por tarefa o seu sustento e educação.
E no regresso destes, duas ou três vezes por ano, são ainda esposas e camaradas e cúmplices, nas alegrias, nas tristezas e nas preocupações.
Para entendermos a importância destas mulheres, devemos tentar conhecer minimamente a sua história:
Por várias gerações, a exploração da Ria foi um direito da população, sem grandes restrições. Em terra de parcos recursos, o pão era de quem dele tinha precisão e a natureza nunca virou costas a quem dela se socorreu.
Depois, e pela mais que óbvia necessidade de manter um equilíbrio na procriação das espécies, foram sendo criadas regras e limites.
Nas longas ausências dos maridos, e na falta de outros meios de subsistência, foram elas as que mais se socorreram da arte de mariscar e que mais sentiram a necessidade de adaptar a sua rotina às exigências impostas.
Passaram muitas delas a ser Arrais e Patroas das embarcações, profissionalizaram-se como mariscadoras, licenciando-se e passando a pagar as suas contribuições, como em qualquer outra actividade.
E vão, tal como em tempos foram as mães e as avós, madrugada fora, ao compasso das marés, bateiras cheias delas; faça sol ou faça chuva, frio ou calor, porque já os seus antepassados diziam que “é lá fora que vê o tempo”…
Não fossem as épocas do defeso e nada as demoveria de calcorrear as areias salgadas, porque à sua mesa não vem ter nada que não seja suado e as bocas todos os dias pedem pão.
Mas desengane-se quem pensa que estas mulheres são discípulas da tristeza. A vida é dura e desgastante, mas as águas da ria são a melhor terapia para as mazelas do corpo e da alma.
As viagens na bateira são autênticas romarias, onde colocam a conversa em dia, falam da vida delas e das outras, das telenovelas e das últimas tendências da moda; dos maridos que estão longe e da vontade de os abraçar; dos filhos e da ânsia de os ver crescer numa realidade diferente da delas.
Falam de tudo isto enquanto cantam, riem e brincam, porque a maré dá tempo para tudo.
Por vezes também choram e lamentam a sorte, mas não desanimam. Porque maior que a dureza da vida, é a vontade de a viver, condignamente.


Texto de Francisco José Rito
Fotografia de Sofia Azevedo

 


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