CARTA A UMA VARINA

Fez-te o destino nascer Varina, sina que abraçaste e à qual obedeceste.
Ensinou-te a vida a sentires-te realizada nas coisas pequenas, que te compensaram pelo que não tiveste.
Enquanto outras viviam de sonhos e ilusões, a ti sobrava o trabalho e os cuidados. A preocupação de trazeres para casa o pão com que havias de enfeitar a mesa humilde, de quem nasceu nas palhas pobres.
O que te faltou em altura, deu-te a vida em coragem.
Deu-te uma alma que moveu montanhas e um coração tão grande, que nunca coube dentro de ti.
Deu-te um rosto de princesa. Uma pele suave que o sol tisnou, que o sal castigou, que os anos marcaram, mas que nunca perdeu os traços de menina.
Deu-te uns olhos brilhantes como faróis, da mesma cor dos cabelos que em tempos te caíam até à cintura, e que tu prendias ao cimo da nuca, coberto com um cachené, não fosse a maresia queimá-los.
Deu-te um corpo esguio, esbelta silhueta, onde o mais singelo trapo assentava graciosamente.
Deu-te uma voz de sereia com que cantavas ao desafio com o teu infortúnio.
Deu-te a alegria contagiante com que dançavas as modas de roda, que te aqueciam os pés descalços e frios.
Deu-te um amor que te arrebatou para toda a vida, que te ajudou a esquecer as dores nas costas cansadas de carregar a canastra contra o vento agreste, que te gretava os lábios molhados de salmoura, ou de alguma lágrima que a tua resignação deixasse escapar.
Deu-te os três rebentos que plantaste, que pouco embalaste - porque outras necessidades se impunham - mas cuja existência te embalava as penas, de sol a sol.
Sim, foste mulher apaixonada. Trocaste um dia a canseira dos trabalhos que ainda hoje te deixam saudades, pela felicidade de um lar pobre, mas honrado.
Foste Mãe-coragem, esposa dedicada, companheira leal.
Hoje estás cansada, Mãe. Porém, os anos enrugaram-te as carnes, mas não te enfraqueceram os sentidos. Antes te apuraram a perspicácia de a quem já nada surpreende, por já tudo ter visto.
Sentes agora escaparem-te pelos dedos os dias e as forças, mas não abdicas do teu papel de zeladora, qual pastor em guarda ao seu rebanho. Um rebanho que Deus te quis dar pequeno, mas unido, que te completa.
Nunca sentiste a falta do que te faltou, porque o pouco que tiveste, foi muito mais do que alguma vez sonhaste.

Francisco José Rito, in "Um mar de sentidos" e "Contar Marinhão"

Sem comentários:

Enviar um comentário

Obrigado pela visita. Este espaço é seu. Use e abuse, mas com respeito, principalmente por quem nos lê. Francisco