A HISTÓRIA DE UM AMOR
 

– Esta não é uma história qualquer. É a mais bela história de amor que eu conheci, contada da única forma que eu sei contar histórias; com o coração e com simplicidade, a mesma que também caracteriza os seus protagonistas.

Era Domingo, tarde soalheira de Setembro, que convidava a descansar o corpo numa agradável sesta na borda-d’água. Uma manta estendida à sombra de uma das muitas árvores que verdejavam a zona ribeirinha, seria o ideal, mas naquele dia o sono não estava nos planos de Angelina.
Era dia de festa na paróquia. No segundo domingo de Setembro, celebrava-se o dia da Senhora da Natividade, patrona daquelas terras e das gentes do lado de cá. Da outra banda, nos areais da Torreira, reinava o São Paio, padroeiro dos pescadores e das varinas, que era festejado uma semana antes, naquela que viria a transformar-se na maior romaria das gentes ribeirinhas.

Da parte da manhã, tinha assistido à missa e às celebrações religiosas, próprias do dia. Chegou a casa quase na hora de almoço, que nesses dias de festa se prolongava até meia tarde. O rancho era diferente, mais abastado e por isso mais demorado, tanto na preparação, como na permanência à mesa.Quando deu pelas horas já os foguetes estalavam no ar e a Banda Filarmónica tocava no adro da igreja. Levantou-se a correr, porque a mesa ainda estava por limpar e a loiça por lavar. Sem essas tarefas feitas, não havia ordem de sair de casa.

Quem corre por gosto não cansa. Talvez por isso, um quarto de hora depois já tinha terminado as lides domésticas – vestido a saia e blusa de chita que tinha estreado nesse dia, o cachené garrido por cima dos ombros, chinelas pretas de meio salto – e devorava a distância que a separava do arraial.

Apesar de gostarem de ouvir a banda tocar no coreto, a festa para a rapaziada mais nova começava depois, quando se formavam as rodas, dançando ao som da viola ou do realejo.

Aquilo é que era virar até ao sol-pôr! Tinha de aproveitar. Era a última festa e seriam, provavelmente, as últimas danças desse ano. Em duas semanas embarcava para Alcochete, para mais seis meses nas secas de bacalhau e por lá não havia folias. As únicas cantigas, eram as que ela cantava, tentando embalar o cansaço.
 

O trabalho era de sol a sol, pelo período que durasse a safra. Dependia das condições atmosféricas e da quantidade do peixe. Tinham que aproveitar os dias mais frios e os ventos frescos, para a secagem do “fiel amigo”, trazido dos mares da Gronelândia, da Noruega ou da costa do Lavrador. Um trabalho duro, que requeria força de homem mas os corpos eram novos e resistentes e os seis meses passavam a correr.
Na terra não se arranjava emprego. Em algum lado teria de ganhar a vida.

Voltou a casa, feliz e contente, não só pela animação da romaria mas porque um rapazote que há tempos a trazia debaixo de olho, tinha por fim, tido coragem para lhe dar dois dedos de conversa.
Acompanhou-a a pé, desde a igreja até ao caminho que dava para a sua casa. Os carros naquela época contavam-se pelos dedos e mesmo as bicicletas não eram para as carteiras dos pobres pescadores como o Francisco. O único meio de transporte que conhecia era a bateira, movida a fortes braçadas de remos, com que percorria a ria de norte a sul, para ganhar o pão de cada dia.

Esse pormenor, para Angelina, não tinha qualquer valor. Que diferença lhe fazia se o rapaz tinha carro ou bicicleta, se pobre também era ela?! O importante é que o tinha ali, caminhando a seu lado. Com ele iria mesmo a pé, até ao fim do mundo…
Pouco tempo lhes durou o prazer. Haviam chegado ao ponto em que teriam que separar-se, não fosse o diabo tecê-las e serem vistos juntos. Não havia autorização para mais, apesar dos seus quase vinte e quatro anos de idade.

Começou naquele dia um namoro que duraria quase três anos e que precedeu a um casamento para toda a vida. As ausências eram mais e mais longas do que as presenças, dividas entre as safras em Alcochete e o cultivo do arroz no Baixo Vouga, as viagens ao bacalhau e as safras à pesca do sável em Vila Franca de Xira ou em Setúbal.

Durante o pouco tempo que se juntavam na terra, ainda tinham que encontrar-se às escondidas, porque aquele namoro nunca foi bem visto pelas famílias de ambas as partes.
Os dias de festa eram uma tormenta para Francisco, que não sabia dançar e passava a tarde inteira de olhos postos nas rodas, a ver com quem dançava a sua amada.
 

O pior é que ela dançava. Dançava-as todas e com todos os que a convidassem! De nada serviam, a Francisco, os olhos humedecidos pelo ciúme.
– É para o lado que eu me deito melhor, dizia às amigas. Incomoda-o que eu dance com outros rapazes? Pois que aprenda e que dance comigo!
Ditava-lhe a inocência dos verdes anos, que apesar de gostar dele, não lhe devia nada. Enquanto nada lhe devesse, de nada se privaria, sempre e quando a sua honra se mantivesse intacta.

Foram vivendo como podiam, esperando que o tempo se encarregasse de resolver o que eles não conseguiam, porque os seus corações estavam prometidos um ao outro e tinham decidido que nada nem ninguém os conseguiriam separar.

Ao fim de três anos, decidiram casar. Já não eram propriamente crianças, sabiam muito bem o que queriam e aquela relação proibida estava a tornar-se insustentável.
Para além da roupa no corpo, pouco mais tinham para chamar de seu.
Decidiram que na próxima safra iriam ganhar para si. Era preciso dinheiro para o fato e para o xaile que levariam à igreja, além de que teriam que alugar casa, nem que fosse um palheiro. E comprar uma mesa com duas cadeiras, uma cama… O essencial para o princípio de vida. O resto, o futuro ditaria.

Se bem o pensaram, melhor o fizeram. Naquele mesmo dia, sentados cada um à sua mesa, comunicaram aos pais a sua intenção.
As reações não se fizeram esperar. E não os surpreenderam.
–Se queres ganhar para ti, arranja onde dormir! Desta porta para dentro, nunca existirão duas carteiras.
E assim foi. Antes de embarcarem cada um para o seu lado, já deixaram uma casita apalavrada, com a condição de só pagarem a renda quando regressassem.

Casaram logo após a chegada, na capela da Quinta da Caneira, porque a Igreja Matriz andava em obras. Angelina vestiu a saia e blusa dos seus sonhos, feitas dos tecidos que ela há tempos namorava, na montra da loja das Marecas, onde comprou também os sapatos de verniz – os primeiros que os seus pés calçariam – e a echarpe branca, que lhe cobriu os fartos cabelos negros, presos na nuca.
Francisco foi de fato azul, com gravata a combinar, mas só até à saída da igreja. Não era homem para gostar de se sentir naqueles apertos.

A acompanhá-los foram apenas os padrinhos, porque o dinheiro não dava para grandes festejos. O almoço foi feito e degustado em casa. Um galo de cabidela, oferecido pela madrinha e cozinhado em cima do fogareiro a carvão. Na véspera, a noiva tinha passado o serão a fazer Aletria e Arroz Doce, os únicos mimos que aprendeu a confeccionar.

Os próximos anos seriam de grandes dificuldades mas a vontade de vencer na vida e de serem felizes, era bem maior…
Logo que puderam, compraram um pedaço de terreno onde existia um pequeno palheiro,construído com casqueiras. Um casebre – para todos os efeitos – comparado com a casa onde moravam, mas era seu!
 

Os primeiros invernos foram lá passados. Entre as tábuas sobrepostas, ressequidas pelos anos, existiam gretas por onde entrava o vento, a chuva e os sardões. Para protegerem um pouco as duas meninas que já tinham, forravam o interior com uns pedaços de papelão que Francisco trazia da traineira.
Era um remedeio, apesar de passados poucos dias, estarem encharcados. Havia que retirá-los e pregar outros. Esse pormenor, aliado ao facto de o chão ser de terra batida, que Angelina disfarçava com junco seco, tapado com as passadeiras de tiras, transformava as noites de inverno em autênticos pesadelos.

Logo que puderam, desmancharam o palheiro e construíram a casa onde ainda hoje moram. Só tinham dinheiro para a mão-de-obra, mas o Senhor Joaquim Crispim, vendedor de materiais de construção, fiou-lhes tudo o que precisaram, com a condição de irem pagando, com o fruto das viagens que Francisco haveria de ir fazer à Terra Nova.
E assim foi. Quando a empresa fazia contas, o dinheiro ia direitinho a quem o deviam. Quantas vezes o iam levar e em casa não ficava um tostão para passarem o inverno.

Uma vez, o Sr. Joaquim entrou numa taverna e encontrou alguns dos homens que também tinham chegado essa semana, no “Capitão João Vilarinho”. Dada a confiança que tinha com um deles, chamou-o ao lado e perguntou-lhe quanto tinha dado a viagem.
Como já calculava, tinham recebido exactamente a quantia que Francisco lhe entregara essa manhã.
Pegou na metade do dinheiro e foi devolver-lho, mas não sem antes lhe dar um correctivo:
– Tendes filhos pequenos e o inverno é longo. Se me entregais tudo o que ganhais, que lhes dais de comer até á próxima chegada? E se um azar vos bate à porta, o que fareis?

Foi nesta casa, hoje com bastantes alterações ao projecto inicial, que criaram os três frutos do seu amor.
Hoje, cinquenta e sete anos depois – uma vida inteira de trabalhos, de sacrifícios e privações – cansaram-se-lhes os corpos mas não o coração.
O amor mantém-se. O amor e a amizade; a cumplicidade e o respeito. Condimentos indispensáveis, numa história de amor à moda antiga.

Se começaram pobres, a ricos não chegaram, mas conseguiram a riqueza maior que alguém pode ansiar: um lar onde sempre se manteve acesa a chama.
Não sendo doutores, souberam incutir nos filhos a sabedoria da vida. Os valores da honestidade e da dignidade.
Se nada mais lhes deixarem por herança, a mais não serão obrigados.

Apesar de tudo, nunca se arrependeram da decisão que tomaram há tantos anos. Sentiram naquele dia, à volta das rodas, da guitarra e do realejo, que pertenceriam um ao outro, até que a morte os separe.

O verdadeiro amor ultrapassa tudo, menos a si próprio.


Francisco José Rito, in "Contar Marinhão"

1 comentário:

  1. História de vida onde reina a amizade a união e o amor apesar das dificuldades.. Coisa rara nestes dias.. Obrigado pela partilha..

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Obrigado pela visita. Este espaço é seu. Use e abuse, mas com respeito, principalmente por quem nos lê. Francisco