A HISTÓRIA DE UM AMOR

Entrei de novo em contagem decrescente. Acontece sempre assim, de há uns anos a esta parte. Os meus velhinhos celebram o seu grande amor, a sua união, e eu fico ansioso, por achar sempre que nunca lhe prestamos a homenagem merecida.

Este foi um casamento que aparentemente desagradava a todos, menos a eles e ao seu Deus, que os abençoou e os quis manter juntos uma vida inteira.

São os meus heróis. Um exemplo de vida, de dignidade, de respeito. Não o digo aqui por serem meus pais, digo-o porque são as pessoas mais nobres que conheci. A sua incansável paciência um para o outro, para os filhos, para os netos, não me parece por vezes de pessoas deste mundo. O saberem sempre respeitar o espaço um do outro e o nosso, mesmo quando não concordam com as nossas atitudes. A sua perspicácia e sobriedade, quase aos 80 anos, inspira-me.

Prestes a celebrarem 52 anos de matrimónio, quero deixar aqui, em meu nome e em nome das minhas irmãs, esta singela homenagem dos três rebentos que a vida vos deu e que vocês tão bem souberam gerar, criar, mimar, cuidar e proteger.

Fica este texto, que um dia vos dediquei, que embora não sendo novo, não me canso de o publicar, por ser a história de amor mais bela que conheci. Parabéns, casal Vieira! E força para mais um ano, como diz a Ti Angelina. "Um de cada vez"...




Era Domingo. Uma tarde soalheira de Setembro que convidava a descansar o corpo numa agradável cesta na borda d'água. Uma manta estendida à sombra de uma das muitas árvores que verdejavam a zona ribeirinha seria o ideal, mas naquele dia o sono não estava nos planos de Angelina.
Era dia de festa na paróquia. Naquele segundo domingo de Setembro celebrava-se o dia da Nossa Senhora da Natividade, patrona daquelas terras e das gentes marinhoas "do lado de cá".
Da "outra banda", nos areais da Torreira, "reinava" o S. Paio, padroeiro dos pescadores e das varinas, festejado uma semana antes.

Da parte da manhã tinha assistido à missa e às celebrações religiosas próprias do dia . Chegou a casa já eram horas de almoço, que nesses dias de festa se prolongava até meia tarde. O "rancho" era diferente, mais abastado, e por isso mais demorado, tanto na preparação, como na permanência à mesa.
Quando deu pelas horas já os foguetes estalavam no ar e a banda filarmónica tocava no adro da igreja.
Levantou-se a correr, porque a mesa ainda estava por limpar e a loiça por lavar. Sem essas tarefas feitas não havia ordem de sair de casa. Como quem corre por gosto não cansa, 15 minutos depois já tinha terminado as lides domésticas, vestido a saia e blusa nova de chita que tinha estreado nesse dia para levar à procissão, o lenço florido pelos ombros, chinelas pretas de meio salto e caminhava a passos largos a caminho do arraial.

Apesar de gostarem de ouvir a banda tocar no coreto, a festa para a rapaziada mais nova começava depois disso, quando se formavam as rodas a dançar ao som da viola e do realejo.
Aquilo é que era "virar" até ao sol-por! Tinha de aproveitar. Era a ultima festa e provavelmente as ultimas danças desse ano. Em duas semanas embarcava para Alcochete para mais uma "safra" nas secas do bacalhau e por lá não haviam "fulías".
As únicas cantigas eram as que ela cantava, tentando embalar o cansaço. O trabalho era de sol a sol, por um período de seis meses. Havia que aproveitar os dias mais frios e os ventos frescos, para a secagem daquele peixe, trazido dos mares da Gronelândia, da Noruega ou da costa do Lavrador. Um trabalho duro, o da secagem, requeria quase força de homem, mas os corpos eram novos e resistentes e os seis meses passavam a correr.
Na terra não haviam empregos. Nalgum lado teria de ganhar a vida.

Ao fim da tarde Angelina voltou a casa, feliz e contente, não só por a animação da romaria, mas porque um rapazote que há tempos a trazia debaixo de olho, por fim havia ganhado coragem para lhe dar dois dedos de conversa.
Acompanhou-a a pé, desde a igreja até ao caminho que dava para a sua casa. Os carros naquela época contavam-se pelos dedos de uma mão e mesmo as bicicletas não eram para as carteiras dos pobres pescadores como o Francisco. O único meio de transporte que conhecia era a bateira, movida a fortes braçadas de remos, com que percorria esta Ria de norte a sul, para ganhar o pão de cada dia.
Esse pormenor, para a Angelina, não tinha qualquer valor.
Que diferença lhe fazia se o rapaz tinha carro ou bicicleta, se pobre também era ela?! O importante é que o tinha ali, caminhando a seu lado. Com ele iria mesmo a pé, até ao fim do mundo.
Pouco tempo lhes durou o prazer. Haviam chegado ao ponto em que teriam que separar-se, não fosse o "diabo tecê-las" e serem vistos juntos. Não havia autorização para mais, apesar dos seus quase 24 anos de idade.

Começou naquele dia um namoro que duraria quase três anos e que precedeu a um casamento para toda a vida.
Nesses anos de namorico, as ausências eram mais do que as presenças, dividas entre as "safras" em Alcochete e o cultivo do arroz no baixo-Vouga, para a Angelina, e das viagens ao bacalhau e as "safras" à pesca do savel em Vila Franca ou em Setúbal, para o Francisco.
O pouco tempo que se juntavam na terra, ainda tinham que encontrar-se às escondidas, porque aquele namoro nunca foi bem visto pelas famílias, de parte a parte.
Foram vivendo como podiam e o tempo foi passando, mas os seus corações estavam prometidos um ao outro e tinham decidido que nada nem ninguém os conseguiria separar.

Ao fim de três anos pensaram em casar. Já não eram propriamente crianças, sabiam muito bem o que queriam e aquele namoro proibido estava a tornar-se insustentável.
Pouco mais tinham a que chamar de seu, do que a roupa do corpo.
Decidiram que na próxima "safra" a Alcochete e ao bacalhau iriam ganhar para si. Era preciso dinheiro para o fato, para uma saia, uma blusa e um xaile, que levariam à igreja, além de que teriam que alugar nem que fosse um palheiro e comprar uma mesa com duas cadeiras e uma cama. O essencial para o principio de vida. O resto o futuro decidiria como ia ser.
Se bem o pensaram, melhor o fizeram e naquele mesmo dia, sentados cada um à sua mesa, comunicaram aos pais a sua intenção. As reacções não se fizeram esperar e não os surpreenderam.
-Se queres ganhar para ti, arranja onde dormir! Debaixo destas telhas nunca existiram duas carteiras.

E assim foi. Antes de embarcarem cada um para o seu lado já deixaram uma casita "apalavrada", com a condição de só pagarem a renda quando regressassem. Casaram logo após a chegada. À igreja levaram só os padrinhos e vieram fazer o almoço para casa. Um galo de cabidela oferecido pela madrinha, cozinhado em cima de um fogareiro a carvão.
Os primeiros tempos foram de grandes dificuldades, mas a vontade de vencer na vida e de serem felizes era maior.
Logo que puderam, compraram um pedaço de terreno onde existia um pequeno palheiro em "casqueiras". Um casebre, para todos os efeitos, comparado com a casa onde moravam, mas era seu!
O primeiros invernos foram passados lá. Entre as tábuas haviam gretas por onde entrava o vento, a chuva e os sardões. Para protegerem um pouco as duas meninas que já tinham, pregavam papelões no interior, que ao fim de cada chuvada, estavam encharcados. Havia que retirá-los e pregar outros.

Tão pronto puderam, desmancharam o palheiro e construíram a casa onde ainda hoje moram. Só tinham dinheiro para a mão de obra, mas o Senhor Joaquim Horta, que negociava em materiais de construção, fiou-lhes tudo o que precisaram e foram pagando.
Foi nesta casa, hoje com bastantes alterações ao projecto inicial, que criaram os três frutos do seu amor.
Hoje têm os corpos cansados de uma vida inteira de trabalho, de privações, de sacrifícios, ao longo destes 52 anos de matrimonio.
Se começaram pobres, a ricos não chegaram, mas conseguiram a riqueza maior que alguém pode ansiar.
Um lar onde sempre reinou o amor, a paz e a harmonia.
Não sendo doutores, souberam incutir nos filhos que Deus lhes deu, a sabedoria da vida. Os valores da honestidade, da dignidade e do respeito.
Se nada mais lhes deixassem de herança, a mais não seriam obrigados.
Apesar de tudo, nunca se arrependeram da decisão que tomaram há tantos anos. Sentiram naquele dia, à volta das rodas, da guitarra e do realejo, que pertenceriam um ao outro, até que a morte os separe.

A vós, queridos Pais, Francisco e Angelina. Obrigado pelo vosso incansável Amor.

Francisco Vieira

26 comentários:

  1. que bom..!! tudo o que li é uma delícia ...

    e como eu gostava de ser velhinha assim.... :)

    bj
    teresa

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  2. Parabéns ti Vieira, ti Gelina!

    Parabéns por esse amor e sabedoria de vida.

    Parabéns por essa capacidade de saber ensinar a amar com tanta entensidade.

    Parabéns Francisco por seres seu filho.

    Parabéns aos dois por serem teus pais.


    Um grande abraço

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  3. Francisco,

    MUITOS PARABÉNS PARA A FAMILIA VIEIRA.

    Uma verdadeira história de vida, que apesar de provavelmente momentos menos bons ao longo deste 52 anos, continuam a lutar por um amor incondicional.

    Beijo grande para a D. Angelina e um grande abraço para o Sr. Francisco.

    Obrigado por partilhares este momento.

    Parabéns aos seus rebentos por serem fruto de uma relação como esta.

    Um grande abraço meu amigo

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  4. Anónimo4/11/09

    Muito lindo!
    bjs.

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  5. Pizz Buim4/11/09

    Conheço, é o Sr. Francisco Melião Vieira

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  6. Que belo!
    Que vivam por muitos mais anos assim...
    Como acredito sempre na existência do amor verdaeiro esta história tocou-me, fazendo saber que o mundo ainda guarda coisas especiais.
    Beijinhos, Francisco.

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  7. Anónimo4/11/09

    Muito legal, um brinde ao amor desse casal que nos deu o prazer de ter você aqui neste mundão dos blogues.

    Abraços

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  8. Bom dia Francisco,

    Uma homenagem muito bonita que prestaste aos teus pais, concerteza que estao muito orgulhosos nos filhos que criaram....frutos do seu amor!!

    Parabens a D. Angelina e Sr. Francisco


    Uma joka

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  9. Meu amigo, que lindo, que emocionante, parabens pra voce pela homenagem e parabens a eles por essa vida vivida, por essa historia já contada e por tudo que anda virá, que Deus de sempre saude, por aqui, lendo sua historia, sinto falta dos meus, se foram com 37 anos de uniao....abraços e uma bela quarta feira pra ti.

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  10. A história é linda (como são todas as histórias de amor verdadeiro)os teus pais são amorosos, um casal perfeito..
    Daqui, envio o meu abraço de Parabens para eles e para os três rebentos...uma família bonita que é exemplo para todos nós.
    Felicidades e um beijo
    Graça

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  11. Muitos parabéns aos seus pais, Francisco. Uma união assim merece realmente ser celebrada da melhor forma possível. São grandes as lições a aprender e sempre pequenos os agradecimentos por tudo o que eles fizeram, por si e pelas suas irmãs, não é?

    Um beijinho muito grande para ambos e outro para si

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  12. Olá Francisco :)

    Desejo que este teu gesto se repita por muitos anos.
    Parabéns.
    Abraço-te com amizade .

    Norberto

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  13. "São os meus heróis. Um exemplo de vida, de dignidade, de respeito."

    Bonito!!!

    Abraço

    Paulo

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  14. Francisco,


    um texto para derreter corações, adoro as historias por trás das pessoas, parabéns pelo bom gosto ! adorei! parabéns a vocês e aos seus pais e avós, sem dúvida uma prova que o amor é Deus agindo, certo ainda que por caminhos incertos. bjos!

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  15. Andei aqui às voltas a pensar se havia de comentar ou não, até porque é um post intensamente pessoal.

    Mas a ocasião é especial, e os meus parabéns aos teus velhotes!

    Os meus fazem 50 anos de casados para o ano que vem.

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  16. Cirrus, que se trata de um assunto pessoal sabemos nos, mas se o careca o publicou, deu-nos hipotese de compartirmos com ele esta alegria! Nao te facas de envergonhado agora :)


    jokas

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  17. Muitos muitos muitos Parabéns aos teus Pais! Nãotem sido uma vida fácil, mas cá estão eles para as curvas. E bem juntos!

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  18. Estão muito catitas, os dois,

    na fotografia!

    Um abraço

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  19. Bom dia SR. FRANCISCO,

    ah pois, o sr. esta todo janota, agora ja nao se pode trata-lo por tu, por momentos cheguei a duvidar quem seria o careca todo engravatado la no meio e ainda por cima de joelhos para ficar a altura da familia ehehhehh

    Muitos parabens a Familia Vieira

    Jokas

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  20. Meus amigos, bom dia a todos e o meu agradecimento, em meu nome e em nome da minha familia.
    Um bem haja a todos e obrigado pela vossa amizade

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  21. Pela primeira vez que entro newste espaço fico sensebilizado com tanta ternura familiar
    Meu pai já se encontra entre nós mas a minha mãe que fará 90 anos no proximo mês ainda nos dá a alegria da sua presença
    São realmente textos muito lindos os deste espaço
    virei mais vezes sem duvida
    um abraço
    e parabéns á familia Vieira

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  22. Luis, muito obrigado, em nome dos meus e volte sempre
    Abraco

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  23. Agradeço o comentário feito ao artigo "O inexplicável orgasmo de um torturador".enquanto penso nos dias em que haverei de conhecer Lisboa e o Tejo.
    Agradeço também haver postado uma das aventuras do detetive Forxô em seu Blog.

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  24. JMCunha, obrigado pela visita e um bom final de semana para si.

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  25. Apesar de só estar casada há 23 anos identifiquei-me bastante com este texto. E entendo perfeitamente as dificuldades que os seus pais passaram.

    É que, também eu e o meu marido casamos contra a vontade das nossas famílias e, por força dessa circunstância, não contámos com o apoio deles. O nosso casamento foi simples e com poucas pessoas porque os nossos vencimentos não davam para muito. Não tivemos direito a lua-de-mel e os primeiros anos foram complicados.Trabalhávamos em média 14 horas por dia.

    Talvez por isso sejamos um casal unido. Continuamos juntos e com duas filhas que são o nosso orgulho.

    Parabéns.

    Beijos

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  26. NI,
    obrigado pelo seu testemunho, pela visita.
    A maioria dos casais de hoje sao diferentes, nao sao? :-)
    Um beijo e parabens tambem pelo seu

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Obrigado pela visita. Este espaço é seu. Use e abuse, mas com respeito, principalmente por quem nos lê. Francisco