Sobre os roubos do São Paio e da Lâmpada de Ilhavo.


Voltemos ao tempo das romarias ao São Paio da Torreira, na época em que chegavam àquela praia, gentes de toda a zona ribeirinha.
Reza a história que, uma vez, um grupo de Ilhavos, daqueles que aproveitavam as idas fora da terra para se armarem em mafarricos e fazerem das suas, engenharam, ainda a bordo do Matola que os trouxe à festa, uma maneira de roubarem aos Marinhões o santinho da sua devoção.
Há quem diga que a intenção era "fintarem" o São Paio aos pescadores da Torreira, para o "emparelharem" com a Senhora da Saúde da Costa Nova, dada a extrema solidão a que estava condenada a santa, um pouco esquecida por culpa da devoção das gentes à outra Senhora da Saúde, mas da Serra. Assim, com a união dos dois patronos, talvez se conseguisse fazer por lá uma romaria digna de se ver...

Também se diz que essas peripécias dos Ilhavos não eram de espantar ninguém, tal era a sua fama de usurpadores das coisas alheias. Então não tinham ido já quatro deles, com uma padiola, a pé até à barra, com a intenção de trazerem o farol para Ilhavo? Poderia até ter sido consequência de uma daquelas "ramboias" bem regadas, madrugada a dentro, em que um homem perde um pouco a noção da realidade, mas o certo é que foram! Ou pelo menos, assim é constado...

Talvez essa vontade de fazer asneiras na terra dos outros lhes tenha nascido de um desejo de vingança, depois da vergonha que passaram com o famoso desaparecimento da lâmpada, na igreja matriz, mesmo debaixo das barbas de meia freguesia.



Na praia da Torreira, a cena passou-se no próprio dia da festa. Tinha a procissão recolhido ao adro e já os romeiros estavam a meio do ritual de banhar o santo com o tinto que mais tarde haviam de beber, rua abaixo, até à borda-d'água, quando se arribaram à capela os do tal grupo de mal feitores, com o macabro propósito de lhes levar a imagem.

Um deles, o que terá efetuado a proesa, não passaria despercebido aos olhos das beatas que por essa altura estavam já em amena cavaqueira em redor da capela, pelo Varino que levava posto, que o tapava da cabeça aos pés. Mas tal vestimenta, que noutras circunstâncias teria provocado falatório e desconfiança, por ser usada numa tarde de verão, em dia de pagamento de promessas não levantou suspeita, uma vez que cada um fardava e agia mediante o que tinha prometido.

Certo foi que, de repente, ouvem-se gritos de dentro da capela: "Corre ao ladrão, que nos roubaram o santo!"...
Foi tamanho o alvoroço, que da Ria ao Mar não ficou pedra sobre pedra, nem canto por revistar, em busca do menino, que tinha desaparecido assim de forma tão estranha, diante de toda a gente.

Entre as várias teorias, pensava-se já nalgum grupo de galegos, que tivesse vindo ali reclamar o santinho que em tempos tinha sido seu, mas depois de uma vista de olhos, rapidamente se chegou à conclusão de que, numa légua de distância, não havia viv'alma que não tivesse ar de ser filho da grande lagoa.



Visto isso, só restava o tal Ilhavo, com o Varino fechado até aos pés, que em vão tinha tentado já escapar prá borda-d'água - talvez com a intenção de esconder o orago na proa da embarcação, que horas depois o levasse ao destino planeado - mas que estava já emalhado nas mãos das murtoseiras, que o não deixaram arredar pé.

Chegaram os homens que por lá andavam a correr a praia e ouviram os gritos das varinas, cuja vontade era desnudá-lo do Varino e arrancar-lhe até a pele, se fosse preciso. 

O certo é que o São Paio apareceu pelas mãos de quem o tinha roubado do andor. Caíram o Carmo e a Trindade! Foi tamanho o ajuntamento de povo, que os Ilhavos não sabiam por onde fugir, para alcançar a embarcação que os havia de livrar da tareia que se adivinhava.

Ainda hoje se fala, na Torreira, daquele acontecimento. E duas coisas são certas: por muitos anos, os Ilhavos, não voltaram ao São Paio da Torreira e nunca mais o santinho foi deixado sozinho, nos dias de maior ajuntamento de povo.

Em Ilhavo a história foi outra e não teve um final tão feliz, uma vez que a lâmpada da igreja matriz foi roubada durante a missa e nunca mais alguém lhe pôs a vista em cima.



Era véspera da festa na terra e os Ilhavos, homens briosos e crentes, não faziam aquilo por pouco. A igreja estava toda engalanada e o corre-corre, dentro e fora, era de manhã à noite. 

Ao toque dos sinos, começaram a aparecer os crentes para assistirem à santa missa, e quando o abade se arribou ao altar, já quase não havia espaço para mais ninguém.

Durante a homilia, estava o prior João dos Mártires "a santos", quando surgiram de uma das portas laterais, uns sujeitos estranhos na vila, que se dirigiram de imediato à capela do santíssimo.

Quem estava por perto bem os viu e ouviu, como que em tom de desabafo, a dizer mal à sua vida:
-Ai jesus, jesus...quem é que te há-de limpar, por tão pouco dinheiro... 

Mas de seguida, diz o mesmo individuo, para outro que estava ao seu lado: "mas pronto, o ajuste está dado e o senhor prior quer isto a brilhar amanhã, na hora da procissão".

O sacristão assistiu ao longe àquela cena, mas, afeito que estava já aos desvarios do prior, nem estranhou ver a quadrilha de amigos do alheio, munidos de escada, corda e rolnada, a descer a lâmpada lentamente, enfiá-la numa saca de pano e sair porta fora. 

A lâmpada, para quem não sabe, era um vistoso e artístico candeeiro de prata, que descia ao centro da nave, alumiando por completo a capela do santíssimo. 

Mesmo ficando às escuras, nenhum dos fieis estranhou aquelas manobras a meio da missa, por acharem que teria sido ideia do padre, mandar polir a velha lâmpada, por ocasião dos festejos.
Certo é que até hoje, da famosa lâmpada, nem o rasto.

É claro que isto são apenas lendas e não há como provar a sua veracidade, mas não deixam de ser engraçadas.
Mas ainda hoje, nem os murtoseiros querem saber dos Ilhavos por perto do seu santo protector, nem os Ilhavos gostam que se lhes fale na lâmpada.

No entanto, ainda me lembro de ouvir as mulheres da terra a gritar, em tom de maldição, quando se arreliavam com alguém:  "ah malvado, que havias de levar um sumiço como à lâmpada de Ilhavo!"

Estas histórias podem nunca ter acontecido, mas de tão contadas, já fazem parte da nossa cultura.
Também todos sabemos que, nestas coisas das lendas, ninguém as garante nem defende e que "quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto".

Francisco José Rito

4 comentários:

  1. Anónimo29/7/12

    Um pequeno senão:
    - A fotografia usada é da Capela da Nª Senhora da Penha de França na Vista Alegre ( Monumento Nacional).
    - A Fotografia devia ser da Igreja Matriz de Ilhavo.

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    1. Anónimo23/5/13

      Cabe-me dizer-lhe que está equivocado na sua observação. A foto corresponde mesmo à Igreja Matriz de Ílhavo, ainda no seu traço original, antes da sua recuperação exterior. As duas igrejas são bem diferentes. Entre muitíssimas outras diferenças, onde está aqui a imagem da Nossa Senhora de Penha de França bem por cima da entrada?

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    2. Boa tarde e obrigado pela intervenção.
      Pena não ter assinado, mas seja quem for, ajudou a esclarecer uma questão pertinente.

      Bem haja
      Francisco

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  2. Caro anónimo:
    Grato pela atenção. Volte sempre

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