ROMARIAS




Qual de nós, seja Vareiro, Marinhão, Ílhavo, Cagaréu ou Gafanhão, não se lembra dos passeios na Ria de Aveiro, de Bateira ou de Barco Moliceiro? Não era preciso um motivo especial para se juntarem familiares e amigos para grandes passeios e patuscadas na Ria, mas faziam-se anualmente várias romarias, obrigatórias para as gentes da borda-d'água e cujo meio de transporte eram essas embarcações. Desde as festas em honra de Santa Catarina, na Ribeira de Ovar, até ao São Tomé de Mira, a zona ribeirinha da Ria de Aveiro é rica em festividade. 
Entre outras, fazem-se as festas da Senhora da Boa Viagem no Torrão do Lameiro, o São Pedro em Pardilhó, o São Paio da Torreira, a Nossa Senhora das Areias em São Jacinto, o Sr. da Ribeira em Veiros, a Sra da Alumieira em Salreu, a Sra da Memória na Povoa do Paço, a Sra da Saúde da Costa Nova, ou a Sra dos Navegantes na Gafanha da Nazaré. 
Sem querer destacar ou desvalorizar nenhuma delas, vou relembrar aqui duas. São as que mais marcaram a minha infância e juventude.

A rainha das romarias era sem duvida a do São Paio da Torreira. Essa, toda a gente conhece, ou pelo menos já ouviu falar. 
Falarei dela mais à frente, mas agora quero dedicar meia dúzia de linhas a uma outra festa que se fazia anualmente (não sei se ainda se mantém) e que servia também de pretexto para uns agradáveis passeios de Moliceiro ou de Bateira.
Refiro-me aos festejos em honra da Nossa Senhora da Memória. Tinha lugar a 15 de Agosto, também conhecido por "Dia das Sete Senhoras".

Para os murtoseiros a festa começava logo ali pelo cais do Bico, ou do Chegado, com o pessoal a carregar o material (mantas, colchões, comidas, bebidas e tudo o que achassem necessário para passarem 2 ou 3 dias fora). Atravessava-se na Cova do Chegado (rente à casa das Maias) e seguia-se por aquelas regueiras, por entre os juncais, até aos Areeiros. Depois pelos campos dentro, até ao Combinado. Era aí que ficavam os barcos. O resto do percurso era feito a pé. Lembro-me que à noite se amarravam os barcos ao largo do cais, por causa das cobras e outros animais não entrarem a bordo. Depois dos festejos religiosos, do cumprimento das promessas à Santa e das celebrações populares, para nós (forasteiros) a festa acabava já longe da igreja, exatamente junto ao cais, com a malta a dançar em roda ao som de alguma Viola e do Realejo, antes de voltar para casa. Mas não sem antes se acabarem por lá o resto das merendas...

Festas do SÃO PAIO DA TORREIRA:
Bem que podiam chamar-se as festas da Ria, pois eram e ainda são o ex-libris das Terras Marinhoas, a rainha de todas as festas da borda-d'água.
Realiza-se a 7 e 8 de Setembro (dias oficiais, porque a festa dura pelo menos uma semana), na Praia da Torreira, Concelho da Murtosa.
A construção da ponte da Varela (inaugurada em 1964) e a revolução no sector automóvel, reduziram significativamente a afluência de embarcações às festas do São Paio, mas ainda assim a tradição manteve-se por muitos anos. Hoje em dia, são poucos, ou nenhuns, os que utilizam esse meio de transporte. Outros valores se levantam (não necessariamente melhores). São sinais dos tempos...



Ao São Paio chegavam gentes de todo o lado, mas principalmente da zona ribeirinha.
Dois ou três dias antes do início das festas já eu via, a passar ao Bico, Moliceiros e Bateiras, carregados de gente. 
De velas ao vento, ou à vara (na falta deste) eram às dezenas, todos embandeirados. 
Eu não precisava de ir ao cais para os ver e ouvir, bastava-me subir para cima do telhado lá de casa, para os avistar.
E como eu gostava daquilo... naqueles dias não fazia outra coisa!
Ao longe, ouviam-se os romeiros: "Ó Marinhão trás cá a bateira, vamos todos em excursão p'ró São Paio da Torreira"...



Na Torreira, as embarcações atracadas na margem "rendilhavam" a beira-ria, desde as Quintas do Sul, até ao sul do Monte Branco.
À noite viam-se as fogueiras acesas com as panelas ao lume e ouviam-se os cantares das gentes.
As varas amarradas na horizontal, da proa ao mastro e do mastro à ré, faziam de suporte para as velas que cobriam todo o barco, em forma de cabana e nos protegiam do orvalho ou da chuva.
E ali ficávamos "acampados" por uma semana, ora comendo, bebendo e dançando na areia, ora percorrendo a avenida, da Ria ao Mar, cantando e dançando nas rusgas, ou "molhando a palavra" nas tascas da terra...

Na manhã dos festejos (8 de Setembro) a avenida Hintze Ribeiro vestia-se de gala, com "tapetes" de flores que cobriam o chão por onde passavam os andores e os devotos. Das janelas e varandas, caíam penduradas vistosas colchas de renda ou de seda, algumas delas usadas apenas uma vez por ano.
Tempos houve em que o ponto alto das festas era realmente a majestosa procissão e o "banho" ao Santo. Um ritual que teria origem na lenda que afirmava que o S. Paio era bêbado (ainda hoje penso se não seria essa a desculpa dos romeiros, para justificarem os seus exageros no consumo de vinho, naqueles dias)...



Não encontro outra justificação para se ter apelidado de bêbado o Santinho que, segundo reza a lenda, teria dado à costa no areal da praia, vindo da costa da Galiza...Bêbado e maroto, por gostar de puxar o lenço às Varinas, na hora que estas se sentavam no areal, canastra ao lado, enquanto esperavam que as redes trouxessem à praia o peixe que haviam de carregar à cabeça, caminhando por essas estradas fora até Albergaria, Canelas, Fermelã, ou São João de Loure.

O ritual do Banho ao Santo tinha lugar logo a seguir à procissão, quando o andor recolhia à sacristia. Colocavam o santinho numa pia e iam-lhe despejando pela cabeça, litros e litros de vinho, que era trazido a propósito pelos romeiros, para essa ocasião, no cumprimento de promessas por diversas graças recebidas ao longo do ano.
O precioso néctar era depois recolhido da pia e bebido fora da capela, ao qual davam o nome de "vinho santo"...

Hoje ainda se fazem as festas e ainda não se perdeu de todo a tradição, mas a maioria das pessoas já vai de carro. Os barcos carregados de gente fazem parte das memórias de quem teve a sorte de viver aquela época. Perdeu-se o encanto e a alegria de confraternizar e compartir com os "vizinhos" do barco ao lado.
Hoje demoram-se horas para entrar e sair da Praia da Torreira, nos dias da festa. O único proveito que se pode ainda tirar, é apreciar a Ria, enquanto estamos parados no trânsito.
Sim, porque a minha Ria continua lá, imponente, indiferente aos novos tempos e aos costumes modernos.

Francisco José Rito



5 comentários:

  1. Francisco,

    Este é um relato memorável de como se comemoravam as festividades de outros tempos à beira ria.

    Gostaria de pedir permissão para mencionar trechos do seu texto, devidamente referenciado, no meu trabalho de investigação sobre as embarcações tradicionais da ria de Aveiro, no âmbito do mestrado em design da UA.

    Cumprimentos,
    Etelvina Almeida
    etelvina@ua.pt
    www.etelvina.wordpress.com

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  2. Anónimo16/8/09

    eu gostava de saber quando é a festa do sao paio ai na torreira

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  3. ola amigo (a)
    Os dias oficiais das festas do S. Paio realizam-se sempre a 7 e 8 de Setembro, comecando ou estendendo-se ate ao fim-de-semana mais proximo.
    Obrigado pela visita e um abraco

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  4. Belíssima e quase comovente descrição. Toda a minha vida, presenciei aqui na Costa Nova a Senhora da Saúde, com muitos barcos e muita gente, mas, o S. Paio era o S. Paio.
    Por aqui, resta apenas a procissão. Tudo o resto ficou nas brumas de um tempo perdido, não há muito tempo.
    Este fim de semana, imagino que são ali em frente os festejos da Senhora da Maluca, na Gafanha da Encarnação. Nem que não saia, vejo o fogo da minha janela.
    Mas, um grupo irá ao S. Paio, de moliceiro. Fruir da ria é sempre um prazer.
    E digo consigo, agora que está na enchente, a ria mantám-se pujante, calma, esplendorosa. As luzues das Gafanhas, cintilantes, quase chegam até mim, no seu reflexo lagunar.
    O pior são as vazantes muito acentuadas, que quase me começam a preocupar.
    Parabéns pelo seu testemunho.

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  5. Mais uma vez Francisco, um excelente trabalho, fez-me entrar numa realidade virtual onde consegui viver cada palavra relatada... Espero poder ler um dia um livro teu em prosa relatando todos este muitos outros factos que tu vais recolhendo...

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Obrigado pela visita. Este espaço é seu. Use e abuse, mas com respeito, principalmente por quem nos lê. Francisco