SONECA – o furão que quer aprender a ler



Lembram-se do furão brincalhão, que vivia a pregar partidas ao Julião? Que se escondia nas gavetas do guarda-roupa, na máquina de lavar, no jardim e no armazém da lenha?

Sim, esse mesmo, que de tão travesso, um dia deixou-se apanhar pelas garras de um gavião e levantou voo, a pensar que ia de passeio para as Américas, enquanto o pobre Julião chorava e bradava pelo seu nome. E o mafarrico, em vez de tentar libertar-se das garras que o prendiam, ia todo satisfeito, como se fosse sentado na primeira classe do mais sofisticado avião.

Não fosse o seu odor almiscarado a provocar náuseas ao gavião, e sabe-se lá para onde este o teria levado. Talvez para o cume de uma montanha, ou para o ramo mais alto de uma árvore de grande porte. Talvez o deixasse cair no mar, ou nas areias quentes do deserto.

Nenhuma das hipóteses se adivinhava agradável, mas aquilo para ele era uma aventura. Tudo para irritar Julião, de aborrecido que estava, por este não o levar consigo, nas viagens que fazia!

Como é que se explica a um bicho teimoso que não se pode viajar sem passaporte? E que os passaportes não se fazem sem uma certidão de nascimento? Nenhuma das desculpas esfarrapadas de Julião o convenciam, mas ele não queria contar-lhe que o tinha encontrado na mata, muito pequenino, sem pai nem mãe nem irmãos e sem qualquer documento de identificação. Como poderia arranjar-lhe um passaporte?!

O que a maioria de vós não sabe é que, além do sonho de viajar, Soneca também anseia aprender a ler. Não pode apanhar um livro ao seu alcance, que quer logo desfolhá-lo. Depois começa a soletrar as palavras, naquele linguajar atabalhoado que só o Julião consegue perceber, e vá de rabiscar as páginas todas, com anotações.

E quando não consegue escrever o que pretende – que é o que geralmente acontece – faz desenhos, para não se esquecer do seu significado. Isto, para não falar nas folhas rasgadas, com aquelas unhas sempre compridas, que ele não deixa cortar, nem que o matem!

Resumindo, aquilo lá em casa é uma constante consumição! Julião bem tenta manter os livros, os lápis e as canetas fora do seu alcance, mas para este furão não há barreiras suficientemente grandes para o impedirem de alcançar os seus objetivos.

E não ataca apenas os livros, mas tudo o que tenha qualquer tipo de texto. São os jornais e revistas, as cartas, são as contas da água e da eletricidade, são as dicas das promoções dos supermercados, são as embalagens dos produtos… É que não pode ver duas letras juntas, que quer logo descobrir o que aquilo quer dizer.

Quantas vezes Julião acorda a meio da noite e ouve o já costumeiro esgatanhar das unhas na cartolina das caixas de cereais, ou nos pacotes das bolachas? Quase nunca precisa de procurar muito, baste abrir o armário da cozinha, pata encontrar o artista, de lanterna presa na boca, a fazer anotações.


- Com que então, outra vez acordado a meio da noite e a fazer a algazarra do costume dentro dos armários, não é verdade? Isto são horas de andar levantado?


- Ó Julião, tu não te zangues. Eu bem tentei dormir, mas está aqui uma palavra no pacote das bolachas que ficou a martelar-me na cabeça, desde a hora que chegaste do supermercado e te vi arrumar as compras.


- Ai sim? E que palavra é essa, que te roubou o sono? Eu compro sempre a mesma marca, qual é a novidade, que não podia esperar pela hora do lanche de amanhã?


- Olha, é esta aqui.


Timidamente, pega na folha de papel onde tinha alguns apontamentos e empurra-a pela brecha da porta do armário meia aberta. Deixa cair o papel e esconde-se de novo, entre a caixa do Nestum, o pacote de açúcar e o frasco das azeitonas. Julião acende a luz, põe os óculos e embarca na aventura de tentar decifrar o que ali está escrito.


- Es...t..al..ad...iça. Estaladiça?! Onde é que tu viste esta palavra? Deixa cá ver o pacote das bolachas.


- Olha, está aqui, vês? -


E arrasta o pacote, mesmo até à frente do nariz do Julião.


- Isto veio cá para casa por engano. Eu nunca compro bolachas estaladiças, porque tenho gengivas sensíveis. Amanhã vou devolvê-las. Espero que não tenhas rasgado o pacote, com essas unhas que mais parecem uns canivetes!


- Eu não. Eu mal lhe toquei!


- Pois sim! Eras mesmo menino para não mexeres na caixa, depois de veres uma palavra nova. Imagino as cambalhotas que já deste aí dentro, agarrado a ela, que mais parecia estar a passar por aí uma tempestade. Até me acordaste com os trupos, vê lá tu!


Julião pega na caixa, para ver se esta estava muito mal tratada. Por acaso, mas mesmo só por acaso, até nem estava muito mal. De manhã iria ao supermercado para a trocar por uma de bolachas mais macias.


- Mas olha lá, que fixação é essa que te deu agora, de quereres aprender a ler? Arranjaste alguma namorada de longe e precisas de te comunicar com ela, é?


- Não senhor, nada disso! Eu quero aprender a ler mas é para conseguir decorar os teus poemas. É que, quando vou ao parque, sempre que digo aos meus amigos que moro numa casa com dois poetas, pedem-me logo para lhes declamar alguns versos. E fazem troça de mim, por eu não saber dizer nenhum… (e suspira, cabisbaixo).


Julião fica enternecido com a confissão do amiguinho, e lamenta as vezes todas que ralhou com ele, por lhe estragar os livros e outros documentos.


- Ó Soneca, já me podias ter dito que era essa a intenção. Deixa estar que sou eu quem te vai ensinar a ler e a escrever. A partir de amanhã prepara-te para duas horas de lição diárias! Verás que em pouco tempo vais ser capaz de calar a boca aos teus amigos. Mas olha, hoje vou-te ensinar uma quadra para lhes dizeres já amanhã. Anda cá.


Sentou-se no sofá. Soneca saiu do armário e veio sentar-se no seu joelho, deliciado a ouvir a quadra que lhe repetiu vezes sem conta. Tantas, até o amigo a saber de cor.


 O soneca é um furão

Engraçado e brincalhão

Aprende logo a lição

Pois é muito espertalhão


- Pronto, pronto, não precisas de repetir mais vez nenhuma. Arre, que pareces um disco riscado. Eu ainda não sei ler, mas ouvir, ouço bem!


Riem os dois. Julião faz-lhe cócegas no umbigo, Soneça desata a correr, que mais parece uma flecha, na direção da manta que está dentro da máquina de lavar.


- Até amanhã, Julião. Não te esqueças de apagar a luz!


- Até amanhã, Neca! E vê se dormes, olha que amanhã cedinho vais comigo e com o Poeta apanhar as ervas da horta.


- Nem penses! Ou eu estudo, ou trabalho. As duas coisas é que não. Olha, leva o Poeta, que ele já tem a escola toda!



                                                        Francisco José Rito









Sem comentários:

Enviar um comentário

Obrigado pela visita. Este espaço é seu. Use e abuse, mas com respeito, principalmente por quem nos lê. Francisco